jodorowsky e o [im]provável casamento entre espiritualidade e política

devaneios de uma noite insone


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Final de El topo, filme do Jodorowsky – o Jodô, meu terapeuta sem que ele o saiba. O cara, nosso protagonista, depois de uma longa e tortuosa e egocêntrica jornada, percebe que seu desejo de ser o melhor e vencer todos os mestres do deserto não valia de nada. Ele passa anos meditando como uma estátua e, sem saber, em seu transe, é adorado por anões fodidos presos em uma caverna. Um dia ele desperta e, frente a tanto sofrimento, resolve que tem que porque tem que ajudá-los a sair de lá. Coitados, lá, presos, excluídos do mundo. Aí ele vai pro mundo. Juntar dinheiro pra comprar dinamite pra conseguir escavar um buraco na montanha dos anões. Salvá-los.

Triste mundo. Terríveis pessoas. Escrota moral. Ele e sua companheira anã se submetem a recolher as migalhas dessa podridão. Eles juntam grana na rua e, assim, aos poucos, escavam o túnel. Quando finalmente o trabalho que parecia interminável termina, os anões saem todos da caverna, correndo, felizes – finalmente livres! Eles vão em direção à cidade, mas mal sabem eles o que lhes espera: gente com muito ódio portando armas.

São dizimados. Todos. Ou quase todos.

Nosso herói entra em desespero. Pega uma arma e começa a matar todo mundo. Toda essa gente escrota. Depois da matança, senta no chão e ateia fogo em si mesmo. Desilusão total: a abnegação, a entrega em prol dos outros, do que era certo, não adiantou de nada. Merda nenhuma. Gente podre, sociedade podre.

E a história recomeça – a cena final repete a inicial: um homem (filho do protagonista) monta num cavalo, igual seu pai fez, com uma mulher e uma criança, para desbravar o deserto. O ciclo se reinicia.

“Sofrimiento, consuelo, sofrimiento, consuelo”, diz  Jodô em seu último filme, La danza de la realidad, sobre a cadeia de dor e prazer que resume essa vida “mundana”. Maia. Ilusão.

Como romper o ciclo? Como?

A espiritualidade costuma ser entendida como a forma de superar essa ilusão. Faz sentido. Mas sem uma visão crítica da realidade ela não leva a nada, resume-se a misticismo egoísta. Nada, porque a iluminação não pode se dar sozinha. Desconfio que ela só pode vir de uma relação com o outro, com a vida, através de muita compaixão – capacidade de sentir como seu o sofrimento do outro.

Mas não adianta querer consolar quem sofre. É preciso encarar a lógica do sofrimento. A injustiça. A opressão.

Não adianta querer salvar o outro. Só o outro pode se salvar. Só o outro sabe como se salvar. Assistencialismos e paternalismos querem acomodar o lado mais ferrado dentro de uma lógica escrota. Mas é preciso mudar a lógica escrota.

(Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não o criminoso que nos mata. Mas não estou segura de mim mesma: preciso perguntar, embora não saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é, que assim seja.) *

Amor amor amor. Como conciliar o amor com a justa e necessária revolta? Aquela que se coloca contra o absurdo, o inaceitável, contra a expropriação da vida? É possível amar quem nos trucida? Antes de saber se é ou não possível: é desejável amar quem nos trucida?

Bhagavad Gita. Krishna aparece pra Árjuna e diz que ele deve encarar uma necessária batalha. Árjuna fica triste, pensa em todo o sofrimento que vai ser causado, todo sangue que vai ser derramado. Talvez fosse melhor ficar tranquilo, não confrontar, evitar a fadiga. Mas Krishna diz que não. Não se pode fugir de certos confrontos.

O casamento entre a consciência espiritual e política. Será possível? Será desejável? Me parece não só desejável, mas necessário. Que se fale bem alto a palavra amor, que se fale bem alto a palavra esquerda – aquele velho termo que serve para designar um olhar que vê as desigualdades do mundo, que não as aceita como naturais ou inevitáveis ou, ainda pior, como questão de mérito individual, de capacidade. A esquerda aponta o dedo e diz que o rei está nu.

Se o mundo alguma vez conseguir ser melhor, só o terá sido por nós e conosco. Sejamos mais conscientes e orgulhemo-nos do nosso papel na História. Há casos em que a humildade não é boa conselheira. Que se pronuncie bem alto a palavra Esquerda. Para que se ouça e para que conste. **

A esquerda passa por uma crise – a de se descobrir muitas esquerdas, a de se ver repetindo aquilo que critica, a de se pautar na competição e não na colaboração, a de se encerrar em ideologias que não dialogam com as pessoas e com a realidade. Necessária crise. Legítima crise. Mas não é hora de decretar o fim da esquerda (e, consequentemente, o fim da política?). É hora de reinventá-la(s).

Repensar o sentido das coisas. A maneira de se estar no mundo, de se relacionar com ele, com todos os seres. O tempo das coisas. Os ciclos naturais. Resgatar ancestralidades, sabedorias da terra, do espírito, do cosmos.

Desconfio que só a espiritualidade pode resgatar a política.

E que só a política pode realizar a espiritualidade.

 

 

 

* Clarice Lispector, A Hora da Estrela

** Saramago, aqui

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