Archive for the ‘Viajeros’ Category

Viajeros – Bolívia: um outro mundo

domingo, setembro 27th, 2009
Luz na Ilha do Sol.

Luz na Ilha do Sol.

Depois de três meses vamos deixar a Bolívia, esse lugar de cultura tão diferente, que eu pensei ter que viajar muito mais longe para encontrar. Um país que parece ter parado no tempo, que fascina a alguns e assusta a outros.

Ter a sorte de achar um estabelecimento que aceite cartão de crédito é como ganhar na loteria. Os ônibus são um tanto arcaicos (e as estradas então, nem se fale). As “mamitas” ainda usam suas roupas da época da colonização: saia rodada até o joelho, chapéu e tranças. É comum ver homens com a bochecha enorme e a boca verde. Mascam coca. Todos os brasileiros perguntam com excitação sobre a coca, como se fosse algo muito subversivo. Lá, faz parte da cultura cotidiana: a coca é a folha sagrada dos povos andinos, além de dar energia, abrandar a fome e ser bastante eficaz para aliviar os efeitos da altitude.

Vegetarianos, se preparem. Encontrar uma refeição sem carne, principalmente frango, é uma jornada. Pode-se comprar pães e frutas no mercado, mas se você é como eu, que não aguenta muito tempo sem uma refeição quentinha, vá aquecendo as pernas e a língua.

Inicialmente tentávamos assim: “olá senhora, tem alguma coisa sem carne?”, mas como a resposta era sempre negativa, mudamos de tática. Perguntávamos primeiro “o que tem para comer?”, e depois “dá para fazer a mesma coisa sem carne?”. Os vendedores olhavam com uma cara de “como sem carne?”, então explicávamos que existem comidas que não são carne, como um prato com arroz, batata e salada. A maioria respondia que não, outros aceitavam e até cobravam mais barato. Virávamos clientela fiel.

Copacabana e a Ilha do Sol

Em Tarija juntamos uma boa grana, suficiente para ir direto a La Paz comprar material para artesanato e seguir rumo a Copacabana. Passamos um dia e uma noite na capital boliviana. Após um bom tempo longe de metrópoles, foi um tanto quanto estranho ser engolidos pela selva de pedra.

La Paz tem regiões bonitas, mas paz que é bom eu não tive não. Pessoas apressadas e preocupadas, tragadas pelo cimento, asfixiadas pela fumaça. Thiago fez um pouco de malabares e disse que nunca tinha visto pessoas que pareciam tão sérias e tristes enquanto pedia contribuições.

Compramos passagem para Copacabana, às margens do lago Titicaca, pensando que curtiríamos uma praia. Até podia ser, se não fosse tão frio. Foi muito bom para vender, havia muitos turistas, mas descobri que no mundo do artesanato nem tudo são rosas. Existem os chamados “malucos de escola antiga”, artesãos que já estão há muito tempo na estrada, que às vezes têm um código de ética meio estranho.

Passamos o ano novo em Copacabana e já no dia dois de janeiro tomamos um barco para a Ilha do Sol. O barco chegou do lado turístico da ilha, dominado por albergues e gringos. Nós tínhamos a indicação de procurar Dom Tomás, um senhor que oferece quartos e permite acampamento do outro lado da ilha, onde só vivem alguns nativos. O problema é que entre nós e o outro lado havia uma dessas grandes montanhas andinas, a quatro mil metros de altitude, e tínhamos que carregar nossas mochilas de 75 litros lotadas de material, roupas e comida para acampar.

Pagamos todos os nossos pecados subindo, ainda ganhamos uns bônus celestiais descendo e enfim chegamos à casa de Dom Tomás, um senhor boliviano muito simpático. Ele fez algumas gracinhas e indicou onde poderíamos armar a barraca. Alguns artesãos argentinos já estavam lá, em volta da fogueira, esquentando água para o mate.

Ilha do Sol.

Ilha do Sol.

O acampamento era muito simples – o quintal do Seu Tomás. O banheiro era uma fossa e não tinha ducha, o banho era no Titicaca mesmo. Como a água era muito fria, confesso que em uma semana na Ilha do Sol encarei o banho só uma vez.

Criamos uma rotina juntos, nós e os argentinos. Aprendi muito com eles, em vários aspectos. Alguns deles viajavam de bicicleta, já tinham percorrido seu país e o Brasil. As meninas me passaram novos pontos de macramê e a convivência ensinou a ser mais fraternal, a dividir as coisas e a tomar iniciativa. Essas experiências comprovam que não importa o tempo que passamos juntos, sempre é possível fazer verdadeiros amigos.

O ambiente contribuía – a Ilha do Sol é deslumbrante, mágica. Lindo céu, lindo lago, lindas montanhas, um local sagrado para os incaicos. É um daqueles lugares que tenho certeza que vou voltar, com mais tempo para desfrutar.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Hasta luego, Bolívia

Um pouco estranho sair da Bolívia. Esse país nos ensinou muito, foi o cenário propício para intensas metamorfoses. Ao encontrar uma cultura tão diferente, alguns acham mais fácil tachá-la de bizarra. Tentar compreender exige mais tempo e paciência, mas é muito mais bonito.

Chiquita. Ilha do Sol.

Chiquita. Ilha do Sol.

A Bolívia é um país onde as tradições ainda estão vivas, onde a exploração colonial foi arrasadora e o neoliberalismo não encontrou grandes interesses. Uma nação explorada até por seus vizinhos, todos eles, que dentro do sistema de exploração se aproveitam dos ainda mais fracos. Mas esse povo cansou de ser fraco, cansou de ser explorado. Essa atitude se revela nos inúmeros conflitos e na difícil situação social na qual se encontra a Bolívia. Situação de mudança, de tomada de consciência, que infelizmente muitas vezes é confundida com revolta cega e sede de sangue.

Eu não entendi a Bolívia. Acho que nunca vou entender. Mas a aceitei, e aprendi a desfrutar de sua cultura tão distinta.

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Entre passeatas e cachoeiras

segunda-feira, agosto 24th, 2009

Uma família em cima da cascatinha, seguindo o curso do rio. Guarda-chuvas para se proteger do sol. Eu de frente para a cascata, sentada numa pedra, com os pés na água. Chuá, chuá, chuá.

Acabamos de almoçar. Thiago está se preparando para ir trabalhar. Eu fico aqui cuidando das coisas, barracas e mochila. Virei ama de casa por uns dias.

Estamos acampados em Coimata já faz uma semana, a vinte minutos de Tarija – capital do departamento que também se chama Tarija, fronteira com a Argentina. Sob este solo se encontra a maior riqueza da Bolívia: o gás natural. Tem gente aqui com muita grana, e essa história de nacionalização não lhes vem muito a calhar.

Autonomia

O país está em turbulência. Uma nova constituição nacional será elaborada. Em alguns departamentos, os mais ricos, um movimento contrário à política presidencial está tomando as ruas com passeatas e promovendo greves de fome. Eles querem autonomia departamental na exploração dos recursos e que a constituição seja aprovada com dois terços do congresso, e não com maioria simples. Integrantes do movimento afirmam que como Evo Morales já tem maioria no congresso poderá aprovar o que quiser, inclusive o controle federal das reservas de gás natural e a reforma agrária, mudanças que consideram muito radicais. Nos dias em que estávamos na cidade aconteceu uma marcha, na qual milhares de pessoas carregavam velas acesas.

Ao meu ver, esse movimento está mais para a autonomia dos bolsos endinheirados que fazem das ruas de Tarija uma passarela, onde se desfilam as novas e caras tendências da moda e carros importados. Isso no país mais pobre da pobre América do Sul. E a massa segue a elite, enchendo as ruas. Autonomia – parece bonito, não?

Barraca, cachoeira, fogueira e violão

Chegamos aqui para passar o dia, dormiríamos na casa de um casal de artesãos. Coimata é um lugar com várias cachoeiras, nos arredores de Tarija. Trouxemos sacos de dormir, uma panela, casacos e um pouco de comida. No final das contas o casal não veio: dormimos ao relento, sob as estrelas, aquecidos pelo fogo. Acordamos com o sol nos fritando e fomos direto para a fossa, onde a cachoeira deságua.

Nossa cozinha em Coimata.

Nossa cozinha em Coimata.

No hotel, de volta a Tarija, uma senhora me chamou: “venha ver, minha filha, estou vendendo umas coisas, entra, entra”. O que uma velhinha poderia ter que me interessasse? Mais por educação, respondi à sua solicitação e fui ao seu quarto.

Não sei como a velhinha tinha tanto trambolho no hotel. Soldado, nosso amigo malabarista e companheiro em Tarija e Coimata, comprou uma mochila por quarenta bolivianos, equivalente a uns dez reais. Eu me interessei por uma barraca, muito melhor que a minúscula quebra-galho que tínhamos, e um tripé, ambos novinhos. Noventa bolivianos os dois, menos de vinte e cinco reais.

A barraca velha, demos para Soldado. “Pronto, vamos viver em Coimata, temos tudo o que precisamos e ainda economizaremos a grana do hotel”, disse ele. Soldado é de Jujuy, província ao norte da Argentina. Louco, comprovando minha tese sobre os argentinos. Ele tinha acabado de trabalhar numa festa e estava com o pagamento no bolso. Sua namorada o esperava em outra cidade, era o casamento de alguém da família dela. O objetivo dele era usar a grana para alugar um terno, para poder acompanhá-la. E lá estava ele, de noite, cansado, com frio, esperando o ônibus que o levaria até ela. Até que passou um busão com destino a Tarija. “Seria tão bom passar a noite dormindo nesse ônibus quentinho e acordar na Bolívia”, pensou. E foi o que ele fez, sem avisar ninguém.

Soldado faz mágica com os malabares (tirei umas fotos dele em um de seus números com enormes pomelos, espécie de laranja gigante, mas ele pediu os negativos encarecidamente, o que me impede de publicá-las aqui), e nunca para de falar e fazer palhaçadas. Ele e Thiago iam à cidade trabalhar alguns dias e eu ficava sozinha, me nutrindo do silêncio. Quando eles voltavam, festa – com Soldado não podia ser diferente. Ele foi embora ontem, de volta à sua terra.

Depois de tanto tempo presos em cidades, viver em plena natureza está sendo muito bom, revitalizando as energias. Sombra, fogueira e água fresca; precisa de mais?

Soldado e eu  - com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

Soldado e eu – com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

 

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Viajeros – Sabedorias ancestrais, Oruro e deserto de sal

terça-feira, julho 7th, 2009

Saímos do Brasil com apenas uma meta objetiva: ir ao I Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais, de 12 a 15 de outubro de 2006 na pequena cidade de Quillacollo, ao lado de Cochabamba. Depois de todas as complicações para sair do Chile, chegamos ao fórum; dois dias atrasados, mas chegamos. O evento foi promovido pela Comunidade Janajpacha, cujos membros são conhecidos como os Pachamama (Mãe Terra, em quéchua).

Lhama na Comunidade Janajpacha.

Havia chilenos, brasileiros, argentinos e colombianos somando-se aos bolivianos e habitantes da comunidade. Temas importantes foram levantados, como a questão mapuche, apresentada por colegas chilenos, mas a falta de apresentações culturais e conteúdos relacionados à ancestralidade boliviana deixaram um pouco a desejar.

A comunidade

Quando o fórum terminou, pedimos para permanecer mais alguns dias no lugar. Queríamos conhecer seu funcionamento, conviver um pouco com seus habitantes. A iniciativa de construção do local foi de Chamalú, guia espiritual e líder da comunidade. Serviços de hospedagem, massagem e outras terapias alternativas suprem as necessidades financeiras.

Algumas pessoas estão lá há dez anos – qualquer um pode ser aceito, desde que queira desenvolver a espiritualidade, respeite as regras e permaneça no mínimo seis meses. Cigarro, bebida alcóolica e drogas ilegais são proibidos. Se alguém quiser fumar ou tomar uma cerveja, tem que sair para dar uma volta. Fomos aceitos entre eles – mesmo que só por alguns dias e sem pagar pela estada -, com a condição de participarmos das tarefas diárias.

Hotel da comunidade (foto de Thiago Martins).

Os moradores da comunidade – vindos da Colômbia, Venezuela, Argentina, Uruguai, México, Inglaterra e de outros países – eram, em sua maioria, jovens. Todos dispostos a descobrir mais sobre si mesmos, a reencontrar sua ligação com a natureza, aprendendo a ser mais compreensivos e solidários, ao mesmo tempo que mais combativos e esclarecidos.

Apesar da aparente adoração à figura de Chamalú não me agradar, admiro a comunidade. Lá conheci pessoas muito boas, que buscam o seu melhor e o dos outros e que, principalmente, têm a coragem de tentar. Mas como diria Raul, “antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever o seu”.

Oruro

Permanecemos cerca de duas semanas na comunidade e fomos para Cochabamba, onde passamos um mês aprendendo a viver de artesanato e malabarismo com novos amigos. De lá fomos para Oruro com os europeus Mathilde e Jeronimo, caminho obrigatório para chegar ao salar Uyuni.

Seca e a três mil metros de altitude, Oruro é uma cidade desbotada – tudo tem cor de pó. O hotel foi o pior que havia enfrentado até então: sem direito a banho, sem janela nos quartos, com banheiros sujos e cheiro ruim. Mas sobrevivemos.

Nessa época passei a me dedicar com mais intensidade ao artesanato e descobri que com uma boa lábia não se morre de fome. Pela primeira vez vendemos realmente bem, principalmente nos barzinhos noturnos. Os europeus também aprendiam a fazer trampo, sem objetivos financeiros, e Jeronimo nos ajudava a vender.

Antiga civilização

Descobrimos que perto de Oruro existem ruínas incaicas. Pegamos um táxi e chegando ao local pedimos informação num posto policial, onde sequer sabiam das ruínas. Fomos caminhando algumas horas por uma paisagem linda – ovelhas, vento, montanha e um pequeno córrego. Alcançamos as antigas habitações indígenas, feitas de barro, com apenas uma pequena abertura de entrada, para proteger o interior do vento. Em tempos remotos,integrantes de uma antiga civilização viveram naquelas casas. Uma energia muito forte, misturada a uma sensação de intemporalidade, me tomou. O vento trazia, de muito longe, canções à Pachamama, contos de rituais, batalhas e fogueiras.

Ruínas em Oruro (foto de Mathilde Bokhorst).

Na volta passamos por um pueblito, um oásis no meio da aridez, na planície em frente ao morro onde se encontram as ruínas. As sociedades incaicas e pré-incaicas costumavam construir as habitações em plano mais elevado, de maneira que se pudesse observar a região ao redor; abaixo, nas planícies, ficavam as plantações.

Imensidão de paz

De Oruro seguimos para Uyuni – cidade excessivamente turísitica, até então só perdendo para San Pedro de Atacama. Achamos um hotel relativamente barato e confortável e fomos pesquisar os pacotes de turismo – para quem não conhece a região não é muito aconselhável desbravar um deserto branco sem um guia.

Eu no salar Uyuni. Foto de Thiago Martins.

Aquele saco de cronograma turístico – dez minutos para tirar fotos aqui, mais dez minutos para comprar souvenirs ali. Chegamos à Isla del Pescado, no meio do Salar, e tínhamos duas horas para desfrutar. Eu e Thiago saímos para caminhar um pouco e acabamos sendo transportados para um universo branco, onde tempo e espaço perdem referências. Uma experiência mágica, surreal. Tenho muita vontade de voltar e passar uma semana acampando, para ver o que uma situação como essa pode fazer com a cabeça – é de enlouquecer mentes tão acostumadas com escalas como as nossas. Outra ideia é rodar um filme, a luz e o visual são deslumbrantes nesse infinito branco.

Nos despedimos de Mathilde e Jeronimo e fomos para Potosí – uma cidade com muita história, que pensei que me encantaria. No começo foi interessante, mas acabou me cansando. As vendas não iam bem, pessoas nos encomendavam trabalhos e não apareciam para buscar. Cansamos de ouvir “no tengo plata”, “más tarde” e de sermos tratados por quase todos como turistas parasitas, com um gélido distanciamento. Ficamos até juntar grana para o transporte e fomos para Tarija, ao sul da Bolívia. Outro clima, outros ares, outra vivência.

 

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Viajeros – De Cochabamba à cidade mais alta do mundo

segunda-feira, maio 25th, 2009

Bolívia, mais de quatro mil metros de altitude. Ladeiras margeadas por casas de séculos passados, lembrança de Ouro Preto. Potosí foi a maior fonte de prata da metrópole espanhola, testemunhou o esbanjamento de uma elite parasita e a cruel exploração dos indígenas. Hoje vive do turismo, e claro, de suas minas.

Já estamos há mais de um mês neste país que tem o dom de mudar o olhar de todos que o visitam (ao menos dos que se entregam). Chegamos do Chile para o tal fórum do qual tanto queríamos participar, nas imediações de Cochabamba. Vivemos cerca de trinta dias nesta cidade – pela primeira vez verdadeiramente artesanos.

Nosso dinheiro acabou. Estamos sem cartão para saque. Mas descobrimos que sim, podemos nos sustentar com artesanato e malabares. Temos que nos privar de pequenos luxos, mas nada que faça muita falta.

Ontem foi meu aniversário. Jantamos num moquifo à la boliviana – ovo frito, arroz, batata e salada por três bolivianos e cinquenta, cerca de um real. Não tínhamos grana para uma grande comemoração, mas afinal, para quê? Quer coisa mais única que estar em Potosí, na entrada de um show de rock, vendendo artesanato na fila?

Uma nova e estranha família

No nosso segundo dia em Cochabamba, Thiago viu um artesão com cara de brasileiro; Charlie olhou para Thiago e pensou que fosse colombiano. Se identificaram um no outro. Charlie é uma figura; tem trinte e três anos, uns bons quilos, cabelo encaracolado comprido e meigos olhos esverdeados. Ele nos avisou de um alojamento mais barato que aquele onde estávamos, limpinho e com direito a banho pela manhã (aqui na Bolívia, pela escassez de água nas áreas altas e secas, não é em todo lugar que a diária inclui banho). Acordávamos com ele cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos, num português truncado, e fazendo umas coisas esquisitas que ele dizia ser capoeira.

Já no caminho para o Alojamiento Roma encontramos um alemão magro, alto, com olhar de psicopata. Ele toca um instrumento que parece uma fera rugindo, sente a energia dos cristais e vende pulseiras da sorte. “Faça um desejo do fundo do coração, e que não prejudicará a ninguém”, diz ele ao atar o nó no pulso de seus clientes. Quando perguntam quanto custa, ele responde: “um desejo não tem preço, dê a contribuição que achar justa”. E ele realmente se concentra quando está fazendo suas singelas pulseirinhas, para distribuir boa energia pelo mundo.

Deixamos nossas coisas no alojamento e fomos trabalhar junto com Charlie e Oscar, seu amigo também colombiano, em frente à universidade. Oscar é grandão, negro e, apesar da aparência robusta, é inocente como uma criança. Já no primeiro dia foi só eu comentar que estava com fome que ele comprou um lanche para mim. Outro dia perguntou por que eu não usava brincos, falei que minha orelha inflama. Ele me deu uns brincos de coco que tinha para vender, que não infeccionam. Perguntei a quanto ele vendia. “Não, por favor, é um presente”, respondeu.

Depois conheci Martin, o uruguaio de 20 anos que já está há seis na estrada, e a brasileira Alice, sua namorada, estudante de geografia que cogita não voltar às salas de aula. Os dois estavam vivendo no Rio na mesma época, mais ou menos um ano antes. Tinham os mesmos amigos, mas foram se conhecer só na Bolívia. Ele com seus claros dreads desgrenhados, cara magra e língua afiada, disfarçando uma doçura latente. E ela tranqüila, seguindo as ondas da vida. Martin faz arte com alicate e arame, e ridicularizava Charlie, que revende bugigangas compradas em camelôs. O colombiano não ligava, retrucava com humor.

À noite o movimento na universidade é fraco, então os vendedores vão para a praça central. É o ponto de confluência da cidade: num canto fica o pessoal da igreja, o pastor clamando contra satanás e as ovelhinhas aplaudindo; do outro lado ficam os comediantes rodeados por uma pequena multidão, a atração mais disputada da praça; entre os dois eventos alguns homens discutem política. Um dia me enfiei no meio da homarada e ouvi um pouco. Estava interessante, discutiam o que é cultura.

Por toda a praça há trabalhadores informais vendendo artesanato, pipoca, sorvete, café, cuñapé (pão de queijo boliviano) e tudo mais que alguém resolver oferecer. Jimi, um boliviano que viajou cinco anos pelo Brasil, também passava a noite estendendo seu pano na praça. Ele foi pego pela imigração em Joinville, passou um mês na cadeia – segundo ele, foi bem legal; a galera era gente boa e tinha uns assaltantes de banco que pediam as melhores comidas pelo celular – e depois foi deportado para a Bolívia. Em São Paulo, numa madrugada na Praça da República, ele me disse que viu uma nave espacial pousando. Todo mundo (uma galera bebendo madrugada adentro) já estava dormindo e ele ficou paralisado – os ETs fazem o tempo parar para que ninguém possa vê-los. Uma porta se abriu e contra a luz, de canto de olho, ele viu três extraterrestres: o pai, o filho e o espírito santo. “Como na Bíblia, menina, eles vieram para ver sua criação. Eles criaram a Terra, e outros devem ter criado o planeta deles, e sei lá no que isso vai dar”, me contou com seu português de mano paulista. Mas o que ele queria mesmo era conhecer uma gringa que o levasse para a Europa. “Esse alemão é louco, sai da Europa para vender pulseirinhas na Bolívia. Se fosse eu, ficava lá e fazia uma grana”, falava ele rindo. Mais tarde encontraríamos Jimi novamente, em Copacabana. Ele estava com uma gringa.

A vila do Chaves

O Alojamiento Roma é separado apenas por um muro do Alojamiento Cochabamba – antigamente eram um só. No Roma estávamos, além de Thiago e eu, o Alemão, Jimi, Oscar e Charlie. Depois chegaram Jeronimo, metade inglês e metade espanhol, um norueguês, a holandesa Mathilde, quatro malabaristas chilenos, um paraense e sua namorada portuguesa que tinha que mostrar o passaporte para provar que não era brasileira.

Do outro lado do muro estavam Martin e Alice, e chegaram dois casais de artesãos que viajam com filhos pequenos. Parecia a vila do Chaves, ou Chavo del Ocho, nome original da clássica série mexicana. Ao acordar todo mundo tomava banho e ficava conversando no estreito espaço entre os quartos e o muro. À noite o povo se juntava em frente à porta do nosso quarto, onde havia cadeiras e mesinha, e ficávamos conversando até que, um por um ou em grupos, todos iam para seus quartos ou para algum barzinho. E claro, sempre naquele esquema: se alguém tem comida, divide com todos, e assim com água, bebida, enfim, tudo.

Ninguém conseguia ir embora. Mas, no final das contas, o rio segue. Jeronimo e Mathilde, que acabaram ficando juntos, estavam indo para o Salar Uyuni, passando por Oruro. Eu e Thiago aproveitamos para seguir viagem.


Charlie posando com suas artesanias; atrás Oscar iniciando uma venda. Praça central de Cochabamba, outubro de 2006. Foto de Mathilde Bokhorst.
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Viajeros – Uma espiadinha no Chile

terça-feira, abril 21st, 2009

Yerko, um chileno que conheci na Bolívia, definiu o Chile de uma maneira bem engraçada: o condado dos hobbits. Naturalmente isolados do mundo pela Cordilheira dos Andes e pelo Pacífico, os chilenos levam sua vida tranquilos, e apesar de chegarem notícias do mundo inteiro, elas parecem tão distantes…

A imagem que eu tinha do Chile era a de “país mais desenvolvido da América Latina”. Mas o termo “desenvolvimento” junto com “América Latina” sempre é uma piada – só abarca uma elite.

Passamos duas semanas no Chile – dez dias em Valparaíso e quatro rumo à Bolívia. O que escrevo aqui são interpretações pessoais e opiniões de pessoas que conheci, que para mim fizeram sentido. Não tenho pretensões de revelar verdades, para isso já existem a enciclopédia e o dicionário.

Valparaíso

Conheci Luciana em janeiro de 2006 no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais. Contei a ela dos meus planos de viagem e me convidei para ficar na sua casa no Chile. Ela, muito solícita, disse que estaria nos esperando em Valparaíso, cidade onde vive.

Casa da Luciana.

Nunca tinha ouvido falar desse lugar, apesar de ser a segunda maior cidade do Chile, o principal porto do país, sede do poder legislativo nacional e ficar a menos de duas horas de carro de Santiago.

Um porto, seguido pelo centro ao nível do mar, rodeado por quarenta e tantos morros – essa é Valparaíso. A cidade tem um sério problema com coleta de lixo, por isso é relativamente suja. Apesar de ser grande, com mais de um milhão de habitantes, são poucos os edifícios altos, o que a torna mais aconchegante, com um ar provinciano.

Valparaíso tem fama de ser violenta. Uma certa noite estávamos os três – eu, Thiago e Luciana – voltando de um bar. Luciana viu dois homens nos seguindo do outro lado da rua, justamente quando estávamos a menos de uma quadra de sua casa. Eles pararam e pegaram um pau. Seu amigo tinha sofrido uma tentativa de assalto idêntica, no mesmo lugar, pouco tempo atrás. Ele conseguiu fugir. Diante da situação demos meia volta e esperamos; quando voltamos, eles não estavam mais lá. Isso nunca tinha acontecido com a Luciana – nunca a roubaram, apesar de já terem tentado abrir sua mochila no corre-corre da rua algumas vezes. É preciso estar atento e tranqüilo – o perigo existe, mas a paranóia costuma tomar proporções desmedidas.

Perigos à parte, nossa passagem por Valparaíso foi bastante agradável. O melhor da cidade são os morros, repletos de casinhas coloridas, entrecortados por caminhos que só quem vive ali percorre sem se perder. A vista noturna é pura poesia: milhares de pontinhos de luz ondulantes até perder de vista; do outro lado, o pacífico, trazendo os ares do Oriente. Não é à toa que Pablo Neruda tinha uma casa ali.

Para inglês ver

Colada em Valparaíso está Viña del Mar, onde vivem as pessoas mais endinheiradas do Chile. Tudo dentro do moldes turísticos: avenidas margeadas por palmeiras, hotéis de luxo, cassinos, restaurantes e tudo caro, muito caro.

Fomos dois dias a Viña para vender artesanato. Thiago ganhou uma graninha fazendo malabarismo no semáfaro e eu, como de costume, não vendi nada. Mas valeu à pena: vi o por do sol no Pacífico, a primeira vez que vi o sol se por no mar (no Brasil, vemos o sol nascer no mar, a não ser que estejamos numa ilha – questão de bússola). Voltamos a Valparaíso caminhando. Um trajeto de duas horas, que já havíamos percorrido na ida. Cheguei exausta, faminta e queimada do sol. Todos riram da brasileira que ficou vermelha no Chile.

Trauma e silêncio

Os horrores do regime militar ainda estão muito vivos na memória chilena, uma ferida não-cicatrizada. Quando a ditadura brasileira estava no auge da sua repressão, época de exílio, mortes e torturas, meus pais eram crianças tornando-se adolescentes. No Chile, a ditadura terminou em 89, sendo que a década de oitenta ainda foi testemunha do braço de ferro de Pinochet. Luciana conta que na sua infância seu pai recebia pessoas em casa que ficavam o tempo todo dentro de um quarto, não saíam nem para comer. Eram perseguidos políticos. A geração atual chilena carrega em si as marcas desse período.

Depois da ditadura veio o neoliberalismo, que ao que tudo indica se adaptou muito bem aos diversos climas chilenos, desde o desértico norte até o gélido sul. As opiniões de Yerko e Luciana convergem em um ponto: parece que a propaganda do governo funciona bem, que o povo acredita nessa imagem de desenvolvimento, que estão na melhor situação que poderiam estar, enquanto os problemas sociais são evidentes – mendigos pelas ruas, muito trabalho informal, violência e discriminação racial. Os mapuches, indígenas originários da região centro-sul chilena, são os que mais sofrem com a pretensa estabilidade, e são uns dos poucos que ousam levantar a voz.

A causa mapuche

Mapuche significa “gente da terra”. Eram realmente gente da terra, até terem seu território expropriado pela colonização espanhola e serem relegados ao nível mais baixo da escala social. Hoje eles escondem suas origens, alguns trocam de sobrenome para serem aceitos na “sociedade civilizada” e conseguirem um emprego qualquer. É o fenômeno da padronização cultural, apesar da liberdade que se atribui ao sistema.

Existe a lei do indígena no Chile, mas simplesmente não é respeitada. As políticas governamentais, além de serem as comuns “tapa-buracos”, não levam em conta as reais necessidades e os desejos dos mapuches. Um exemplo concreto: num determinado caso, derrubaram suas cabanas e construíram casas. Mas o mapuche não vive em casas, vive em cabanas. Quando foram ver, as casas construídas estavam sendo usadas como chiqueiro pelos supostos beneficiários.

O movimento mapuche acusa o governo de terrorismo de Estado por encarcerar mapuches sem evidência alguma e criminalizar o movimento social.

Pé na estrada

Após dez dias em Valparaíso, já sentíamos que era hora de partir. Queríamos chegar ao Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais na Bolívia, de 12 a 15 de outubro. É sempre bom seguir viagem, mas também é um pouco difícil – quando acabamos de nos apaixonar por um novo lugar, novas pessoas, novos costumes, já está na hora de ir.

Em nosso último fim de semana em Valparaíso, pegamos o Carnaval dos Mil Tambores. Ficamos até as cinco e meia da manhã, numa festa com muito batuque e dança. Não é só brasileiro que sabe fazer festa não.

Saída do Carnaval dos Mil Tambores. Fotos de Thiago Martins.

Tivemos um jantar de despedida na casa de Camila, irmã de Luciana. Ela, que cozinha muito bem, fez um pulmai, prato típico que leva mariscos, batata, carne de porco e frango, acompanhado de vinho branco. Mais uma vez ficamos até as cinco e meia da manhã, apesar de que nosso plano era partir no dia seguinte cedinho. Sabe-se lá quando poderíamos rever esses novos amigos, e a noite estava tão boa…

Mas partimos. Tentamos pegar carona a tarde inteira, mas não saímos do lugar. Decidimos gastar com ônibus, afinal nosso objetivo era chegar a tempo para o fórum. No guichê da rodoviária, expliquei que queríamos ir para a Bolívia e perguntei para onde deveríamos ir. Nos mandaram para San Pedro de Atacama, mas só tinha ônibus na noite seguinte. Ficamos num hotelzinho e no dia seguinte fomos rumo ao norte. Chegamos lá tarde da noite. Para nosso azar, não tinha como ir para a Bolívia por ali – demoraria muito, as estradas são muito ruins. (Nem sempre acredite nos atendedores de guichê de rodoviária.). Era melhor irmos para Calama, pertinho dali, onde deveríamos pegar um ônibus para Arica e daí então entrar na Bolívia. Porém ônibus para Calama, só na manhã seguinte. Nesta nossa romaria para deixar o Chile, dormimos num albergue em San Pedro, cidade que vive do turismo, situada em pleno deserto do Atacama. Nunca vi tantas agências de viagem num lugarzinho tão pequeno. A região tem fama de ser mágica e singular, mas só tivemos tempo de dar uma voltinha.

Chegamos ao meio-dia em Calama. Comprei nossas passagens para Arica, mas teríamos que esperar até às onze da noite. Estávamos fazendo hora na rodoviária; num determinado momento, fui ao banheiro, enquanto Thiago estava lendo. Nesse instante de distração, roubaram minha mochilinha, não a grande com as roupas, mas a que levava minhas duas câmeras fotográficas (uma digital fuleira e minha Nikon FM2, adquirida especialmente para a viagem), meu cartão de crédito, os colares que estávamos vendendo, um disco do Victor Jara, definido como o “Chico Buarque chileno”, que um amigo de Valparaíso me deu, y otras cositas más. Passei o dia inteiro fazendo boletim de ocorrência, tentando entrar em contato com minha mãe para que cancelasse meu cartão, andando na rua olhando neuroticamente todas as pessoas, para ver se encontrava o desgraçado com minha mochila. Susto, raiva, impotência, desânimo – esses sentimentos que costumam aparecer nesses momentos vieram à tona, e o clima da delegacia só contribuiu para aumentá-los. O que eu não sabia é que esse incidente seria a peça inicial que, num efeito dominó, desecadearia toda uma mudança na nossa forma de viajar.

Chegamos em Arica na manhã seguinte e de lá pegamos um ônibus para a Bolívia. Um lugar completamente diferente de tudo o que já vivi. Mas essa já é outra história…

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – El gaucho y el tango

segunda-feira, abril 6th, 2009

Apresentação no 66 Billares, Buenos Aires, setembro de 2006.

 

Essas imagens fazem parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Considerações finais sobre uma nação

segunda-feira, março 30th, 2009

No momento em que estávamos chegando em Córdoba, comentei com o Thiago: “essa cidade tem um ar de Curitiba”. Mas a primeira impressão nem sempre fica. Córdoba é Córdoba.

Uma noite Thiago estava fazendo uma de suas performances nos semáforos quando foi chamado para ir trabalhar  numa festa com seus malabares por cerca de duas horas – em troca, ganharia 40 pesos. Ele topou, e eu fui junto. Foi bem engraçado – era uma festa para menores de idade, em uma boate. Uma piazada de 15/16 anos se esforçando para aparentar 20. As meninas superproduzidas, com micro-saias e tops, os meninos de calça larga, boné e cigarro na mão. Músicas horríveis a noite inteira, mas como ainda não nos alimentamos de luz, e nem sempre conseguimos carona, a grana é necessária. Ossos do ofício.

Ficamos num hostel cujo dono vivia lá mesmo. Ele dormia nos quartos para seis pessoas, em um beliche, junto com os hóspedes. Trabalhou em outros hostels que, segundo ele, eram muito “estilo empresa”. Ele não, ele quer receber os mochileiros na sua casa, em um ambiente informal e aconchegante. A ideia é legal, mas o problema é que alguns hóspedes ficavam o dia inteiro dentro do hostel – que, portanto, estava sempre cheio. Havia um computador com internet disponível, mas eu dificilmente conseguia usar, sempre tinha alguém.

Depois de uns dias queríamos encontrar outro lugar para ficar, onde pagássemos menos e tivéssemos mais espaço para ficar tranqüilos. Um dia eu e Thiago nos desencontramos e caminhamos separados pela cidade. Ele viu um cara tocando flauta, tirou uma foto, perguntou quanto custavam as flautas que ele produzia e assim foram conversando. Seu nome era Kike e fazia uns cinco anos que estava viajando; já pensava em voltar para o Equador, sua terra natal.


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Kike. Foto de Thiago Martins.

Ele conseguiu que nós ficássemos na casa que ele alugava. Teríamos que pagar dez pesos diários por pessoa, mais barato que o albergue. Era um moquifo, não tinha uma panela limpa, mas para ficar só dois dias dava pro gasto. Na verdade, queríamos ter deixado Córdoba na sexta-feira, mas descobrimos que o trem para Buenos Aires só sairia no domingo. Nesses dias não planejados a mais, ficamos na casa de Kike.

Aliás, a viagem de trem foi uma decepção. Pensávamos que iríamos ver lindas paisagens pela janela, como nos filmes. Até poderia ter sido, se a viagem não fosse praticamente toda à noite. Saímos às 16h30 de Córdoba e chegamos a Buenos Aires às 07h30 da manhã. Mesmo assim foi interessante – além de muito barato. Na saída de Córdoba pudemos ver as villas, equivalente às favelas brasileiras. Chegou um dado momento em que tínhamos que fechar as janelas e persianas do trem, porque as pessoas jogam pedras. Ficou claro que a Argentina sofre dos mesmos problemas que o Brasil, mesmo que em diferentes proporções – concentração da população nas áreas urbanas industriais e a consequente marginalização da mão-de-obra excedente não qualificada que, como cães de rua, vive dos restos.

Thiago estava louco para fumar, afinal a viagem foi longa. Na fila do banheiro, encontrou um senhor que discutia em vão com o guarda para que pudesse fumar. Thiago entrou na conversa e, com a saída do guarda, acabaram os dois fumando juntos escondidos no banheiro. Que cena. O senhor veio sentar com a gente. Era sociólogo, militante da Teologia da Libertação – ala socialista da igreja católica.  Conversamos por muitas horas sobre sociedade, cultura e América Latina, até que o sono nos pegou. Acordamos em Buenos Aires.

Um país em declínio

Conversando com as pessoas, pude concluir que a Argentina, que por um longo período da história criou uma imagem de distanciamento da miserável situação latino-americana, está em crise. O ódio que sentem por Menem, o ex-presidente corrupto que fez o trabalho que Collor e FHC fizeram no Brasil, pode ser ouvido nas conversas e nas músicas. O histórico investimento em educação, tão característico do desenvolvimento argentino, vem sendo abandonado. As instituições de ensino mantidas pelo governo enfrentam as mesmas situações enfrentadas no Brasil: falta de verba, de professores e problemas de infraestrutura; o tal do sucateamento das escolas públicas. O desemprego assola a população. A marginalidade e o trabalho informal surgem da necessidade como soluções imediatas à crise.

Em Buenos Aires estava lendo As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. É triste perceber que os problemas são essencialmente os mesmos em nosso continente, independentemente do período histórico ou do país. Às vezes o poder se transfere de mãos, os produtos de exploração se alternam em ciclos, os regimes políticos são derrotados e substituídos, mas a estrutura de exploração é a mesma: expropriação das riquezas naturais e humanas, exportação da maioria do capital e concentração do pouco que fica na nação em mãos de uma elite intermediária. Como o grosso do capital vai para o exterior, o Estado fica sem verbas para os investimentos básicos, e vai pedir ajuda justamente para aqueles que lucram em seu território. O empréstimo vem, mas junto com várias “recomendações” de como investi-lo, mantendo esse sistema de exploração.

José Carlos Mariátegui fez um diagnóstico do Peru no ano de 1928, em Sete Ensaios da Realidade Peruana, porém sua validade se estende para a América Latina e, infelizmente, continua atual.

O obstáculo, a resistência a uma solução, encontram-se na própria estrutura da economia peruana. A economia do Peru é uma economia colonial. Sua movimentação, seu desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados de Londres e de Nova Iorque. Estes mercados enxergam o Peru como um depósito de matérias primas e uma praça para suas manufaturas. A agricultura peruana obtém por isto, créditos e transporte apenas para os produtos que pode oferecer com vantagem nos grandes mercados. As finanças estrangeiras interessam-se um dia pela borracha, outro pelo algodão, outro pelo açúcar. O dia em que Londres possa receber um produto a melhor preço e em quantidade suficiente da Índia ou do Egito, abandonará imediatamente à sua própria sorte seus fornecedores do Peru. Nossos latifundiários, quaisquer que sejam suas ilusões que tenham acerca de sua independência, não deixam de agir, na realidade, apenas como intermediários ou agentes do capitalismo estrangeiro.

Mas a Argentina ainda tem uma vantagem, uma carta na manga: a consciência política. As manifestações artísticas argentinas frequentemente têm conteúdo crítico. A população em geral fala de política, reflete sobre a situação de seu país, desde os mais velhos até os mais jovens. Caminhoneiros me contaram das injustiças sociais, os músicos falam da desigualdade em seus discos. Nos dias em que passei em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, sempre havia manifestações populares. Há um movimento fundado pelas mães de perseguidos políticos, as Madres de Plaza de Mayo, que surgiu como protesto aos horrores da ditadura e exigia a volta com vida dos jovens desaparecidos. Esse movimento cresceu tanto que hoje possui um jornal, uma rádio, uma biblioteca e até uma universidade. Estive na biblioteca, que possui um acervo riquíssimo de obras sobre América Latina, povos autóctones, movimentos sociais etc.

Parece existir na Argentina uma consciência de que as coisas estão erradas, historicamente, e que não precisam ser assim. O próximo passo seria elaborar uma alternativa coletivamente e depois, o mais difícil, implantá-la – trabalho que os movimentos sociais vêm tentando desenvolver. Evoluir da consciência crítica para a construtiva.

Última parada

De Córdoba fomos para Buenos Aires e depois seguimos pedindo carona em direção ao Chile, com a intenção de parar na parte argentina da Cordilheira dos Andes e conhecer neve – o sonho de todo brasileiro. Fomos parar em Puente del Inca, uma cidadezinha povoada por uma base do exército e comerciantes que recebem diariamente as várias excursões de turismo que passam pela cidade. Todo esse clima turístico, incluindo os preços altos, não puderam abalar a nossa alegria. Voltamos a ser crianças. Ficamos só dois dias, cercados de lindas paisagens – uma curiosa e singular mistura de vegetação semi-desértica dos Andes e neve -, e seguimos rumo a Valparaíso, no Chile.


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Puente del Inca.

Ao fim de nossa passagem pela Argentina, apesar de ser difícil colocar toda uma nação num mesmo saco, poderia definir os argentinos com duas palavras: loucos e apaixonados. Acho que essa rivalidade com os argentinos é porque eles têm uma personalidade muito forte, “personalidade demais”, para alguns. “É que o argentino tem muito amor próprio”, me disse Beto, o senhor de Junin. Pode ser. Mas pensando bem, encontrei uma terceira característica para os argentinos: loucos, apaixonados e apaixonantes.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Mudança de tempo

sábado, março 7th, 2009


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Primeira vista da Cordilheira dos Andes.

Hoje, pela primeira vez, vimos montanhas na Argentina. E não se tratam de simples montanhas: tivemos o prazer de vislumbrar a Cordilheira dos Andes delineada pelo por do sol. Em dois dias de estrada praticamente cruzamos o país horizontalmente. Faltam menos de 300 km para chegarmos ao nosso destino, uma cidadezinha andina rodeada por neve, quase no Chile.

Acordamos em Buenos Aires às quatro horas da manhã. Pegamos três ônibus urbanos até alcançarmos o ponto da estrada indicado para pedir carona. Depois de algumas caronas curtas, chegamos à cidade de Cochabuco. Mais um fim de tarde, mais uma expectativa de dormir na estrada. Estávamos decidindo onde nos abrigar quando um carro com dois senhores de uns 50 anos parou. Iriam a Junin, a uns 50 km dali. Aceitamos a carona – ao menos avançaríamos um pouco mais.

Eles faziam o tipo de quem nunca se espera uma carona – meia idade, um bom carro e roupa social. Mas os dois pareciam ser boa gente. Beto, que estava no volante, combinava um churrasco com seus amigos através do celular. Conversa vai, conversa vem, ele nos convidou para o churrasco. É claro que aceitamos de imediato, apesar de sermos vegetarianos. Abrem-se exceções. Beto ficou espantado com a rapidez com que eu aceitei, sem nem pensar muito. “É que eu gosto muito quando as coisas acontecem por si só, sem planejamento”, eu disse. “Você deve gostar muito de churrasco, isso sim”, gracejou Beto.

O fato é que, com churrasco ou sem churrasco, não conseguiríamos mais caronas – a noite já vinha chegando. Teríamos que pernoitar em Junin. “Onde vocês pensam em dormir?”, perguntou Beto. “Não sei, se tiver um albergue, um hotelzinho barato, um camping, não sei”, meio que perguntei, meio que respondi. No fim das contas, ele ligou para seu irmão, dono de um hotel que funciona na antiga casa da família de Beto, onde ele passou sua infância. “Pronto, consegui um lugar para vocês essa noite, e sem pagar nada”.

Não podíamos acreditar. Iríamos a um churrasco – asado, como dizem por aqui -, a mais típica comida argentina, dormíriamos num hotel, tudo assim, de repente, do nada. Mas o mais tocante foi a atenção que recebemos. Beto nos mostrou a cidade, nos levava e buscava do hotel e, por sua insistência, acabamos ficando mais uma noite. Conhecemos sua família, seus amigos, até fui ao mercado com ele e sua filha. Pegaram dois carrinhos: enquanto ela fazia compras para casa, ele comprava comida para uma senhora a quem ajuda. Abandonada pelo marido, desempregada e com cinco filhos pequenos para criar, ela se mantém às custas de caridade. O carrinho dele estava cheio de carne, leite, queijo, frutas e besteirinhas para as crianças. “Pai, você vai gastar demais”, advertiu a filha. “Quando a gente morre não leva nada junto, nem o dinheiro, não é verdade?”, disse Beto, com seu jeito bonachão.

No incidente “feira de artesanato na Plaza de Francia” fiquei muito decepcionada com o ser humano. Em momentos como aquele me pergunto se vale a pena tentar construir uma sociedade melhor, dedicar a vida a isso. Às vezes parece que o ser humano é um animal escroto por essência, que é essa a condição humana. Mas quando encontro pessoas como Beto, sua família e seus amigos, me encho de esperança, passo a acreditar que só precisamos de uma forcinha, que a bomba está prestes a explodir (se é que já não explodiu), que encontramos a escada, é só começar a subir. Brilha uma estrela no céu nublado.

 

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Viajeros – As várias faces de Buenos Aires

domingo, setembro 21st, 2008

Entre experiências agradáveis e decepções, Buenos Aires está sendo uma loucura. Um dia, andando pelas ruas centrais, nos deparamos com um trio de rock (baixo, guitarra e bateria) alucinante. Uma grande platéia se juntou na praça, inclusive senhores de terno e gravata curtindo o som, que variava do punk até o reggae. Puro improviso.

Rock de rua.

Depois fomos parar numa casa de shows que parecia ser muito boa, com quadros inspirados no tango e velas sobre as mesas. A entrada era trinta pesos por pessoa. “Não tem desconto para estudante?”, tentei pechinchar. O funcionário acabou colocando nós dois para dentro por uma entrada. Saímos no lucro? Nada disso. Trinta pesos jogados no lixo. Uma tal de Silvina Garrés subiu ao palco e nos fez conhecer o pior da música pop romântica argentina.

Apresentação de Silvina Garrés.

 

O Thiago quase dormiu. Eu fiquei tentando entender o que ela falava, mas era sempre sobre alguém sem o qual ela não pode viver…

A casa em que estamos hospedados é muito legal. Pablo, um dos moradores, faz parte do Soylocoporti, organização pela integração latino-americano que tem como membros amigos nossos de Curitiba. Nesta casa moram umas seis pessoas, que vivem solidariamente e abrem espaço para a cultura.

Casa do Pablo

 

Às segundas-feiras acontece o ensaio da banda de música andina, da qual Pablo faz parte. Domingo houve uma oficina de introdução ao calendário maia e, na sexta-feira, uma festa de comemoração da independência do Chile. Pablo e Antonio, outro morador da casa, são chilenos, e muitos amigos conterrâneos compareceram à festa no terraço. Ficamos conversando com o Reymond, que é de Mendoza, província argentina na divisa com o Chile, famosa por seus vinhos. Seu irmão está morando em Cuba, nós queremos ir para lá e assim a conversa foi fluindo. Ele nos chamou para irmos a um bar, onde tocaria com outros músicos. Já que era de graça, fomos.

No caminho descobrimos que se tratava de um bar de jazz. Reymond toca saxofone e junto com ele estavam o também saxofonista Johnny, um baixista e um baterista. Foi fantástico. Johnny parecia que tinha música nas veias, além de ser um palhaço. A plateia também dava espetáculo. Os amigos dos músicos eram… como posso dizer… insanos.

Reymond e Johnny tocando saxofone. Foto de Thiago.

 

Depois da apresentação, uma mulher na mesa ao lado estava contando a história da Geni, personagem da música da Ópera do Malandro, de Chico Buarque. Me meti no meio da conversa: “oi, tudo bem, eu sou do Brasil, estava ouvindo a conversa e só queria dizer que, na verdade, Geni é um travesti”. Assim começou o papo. Ela apoia o MST e o PSOL, queria saber em quem eu vou votar, como está o processo eleitoral no Brasil, essas coisas. Engraçado, ela sabia mais da conjuntura política do Brasil que muitos brasileiros. Saímos do bar e voltamos para a festa. Quer dizer, eu fui direto para a cama.

Outra coisa interessante é que nas praças e parques sempre há pessoas deitadas na grama, lendo, brincando ou simplesmente tomando sol. E quando digo pessoas incluio crianças, velhinhos, jovens, casais de meia idade e também moradores de rua. Isso me surpreeendeu. Aqui não é como em Curitiba – riquinhos no Barigüi, mendigos na Tiradentes. As pessoas se misturam um pouco mais e parece que não se tem tanto medo das pessoas que vivem nas ruas.

Ah, mas como costuma ser em todos os lugares, existem várias Buenos Aires. A Buenos Aires dos cafés caros do centro, com pessoas sérias, bem vestidas, com jeito de esnobes. A Buenos Aires da periferia, repleta de bolivianos, favelas (ou villas, como chamam os argentinos) e condomínios feios. A Buenos Aires de San Telmo, o tradicional bairro com suas lojas de antiguidades, no qual a cerveja custa em média oito pesos, enquanto nos lugares mais baratos se paga três pesos e cinqüenta centavos. Tem a Buenos Aires da Recoleta, onde se localiza a Plaza de Francia, que me pareceu o lugar mais nobre da cidade.

É incrível a tenaz linha que separa a nobreza dos plebeus. Estávamos na Recoleta, saindo da feira de artesananto, com fome e procurando um lugar para almoçar. Tudo caro, obviamente. “Vamos até o centro”, pensamos, “lá vai ser mais barato”. E, depois de caminhar um pouco, de repente, de uma quadra para outra, saímos do reduto de luxo, onde as ruas são mais limpas e arborizadas, as lojas mais finas, os prédios mais elegantes, e entramos no centro. Três e cinqüenta um sanduichão. Viva as lanchonetes de banheiro sujo e comida barata.

Aliás, essa é uma característica argentina que não me agrada: comida barata, só besteirada. Não aguentamos mais comer pizza de mussarela. As massas também não saem muito caro e são bem mais atrativas, mas para quem precisa economizar, é um luxo que só se permite de vez em quando. Bom mesmo é quando podemos cozinhar. Comida boa, saudável e barata.

É, Buenos Aires surpreende, em todos os sentidos. Europa sul-americana, nem tanto. Mas que é uma loucura latino-americana, ah, isso é.

 

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Viajeros – Homem primata

sábado, setembro 6th, 2008

Nas situações mais corriqueiras me deparo com a necessidade urgente de uma grande mudança que parta da humanidade. É uma questão de mentalidade, dos valores básicos que regem nosso cotidiano, nossos relacionamentos, nossa visão de mundo, do outro e de nós mesmos.

Há pouco mais de um ano estive como turista em Buenos Aires. Naquela ocasião conheci a Plaza de Francia, que todo fim de semana é ocupada por uma feira de artesanato. Fiquei encantada com tantas coisas lindas, por sua originalidade e engenhosidade. Hoje voltei à mesma praça, agora como artesã, e infelizmente o encanto se desfez.

Chegamos à praça e fomos fazer o “reconhecimento do local”. Percebemos que não havia artesãos estendendo panos no chão. Conversei com um vendedor e ele me confirmou que realmente a polícia não permite a venda informal. Amarrei nossos swings de fitas no pescoço e comecei a brincar com um par deles, mostrando como se faz. Se alguém parasse para olhar, daí sim diria que estavam à venda. Um jeitinho de driblar a fiscalização.

Ao meu lado, a uns seis metros, um senhor tocava seu violão, com o chapéu no chão. Ele pareceu fazer um gesto para mim. “Será que ele quer que eu saia?”, pensei. “Não, não deve ser isso”. Mas era. Ele se levantou e veio em minha direção. Disse que eu tinha parado muito perto dele, que era para eu sair dali. Argumentei que não estava pedindo dinheiro pelo “espetáculo” (eu estava treinando, minha habilidade com os malabares é pífia). Mas ele firmemente, ou rudemente, falou que eu desviaria a atenção das pessoas. “Há outros lugares por aí, aqui já tem gente suficiente”, concluiu. Virou as costas e voltou à sua posição. Eu, muito chateada, cedi. Afinal, se o trabalho de um artesão atrapalhasse o do outro, por que todos se juntariam em uma praça? Não é justamente a diversidade o atrativo das feiras?

Saí para dar uma volta, tirar fotos, espairar. Encontrei um outro senhor tocando violão e cantando. Apontei minha objetiva, estava ajustando o foco quando o vi fazer um gesto – dessa vez eu entendi, ele queria que eu colocasse uma moeda, justo eu, andarilha aspirante a artesã frustrada. “Sem dinheiro, sem foto”, disse ele. Parou a música só para me impedir de tirar uma foto. Fiquei tão chocada que não consegui argumentar. Nocaute. Justamente dois senhores, de quem se espera sabedoria, ou ao menos maturidade. No mínimo educação. Mas a pobreza de espírito não tem idade, sexo nem raça.

Lembrei dos artesãos de Isla de Cerrito. Sentiam imenso prazer em dividir seu espaço, sua comida, seu conhecimento com quem quer que fosse, inclusive dois brasileiros que haviam conhecido dois dias antes.

Sim, é uma questão de mentalidade, de valores. De pôr em prática a fraternidade e superar o egoísmo e o materialismo. Uma questão de se permitir evoluir, de plenamente ser humano.

 

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