Posts Tagged ‘poesia’

Aqui e ali

quinta-feira, agosto 12th, 2010

Sempre sinto que estou atrasada,
mas agem como se estivesse correndo demais.
Atrasada pra quê? Correndo pra onde?

Me engano fazendo de conta que controle meu destino,
que brinca comigo
– ao menos me faz acreditar que me gosta,
que zela por mim.

Sabe aquela coisa que não dá para explicar?
É bem isso.
Sou senhora, escrava e rebelde.
Me imponho, mas ignoro o que há dentro de mim.

E daí? E você? Sabe quem é?
Vou dançando. Cantando.
Se não sei quem sou, me invento.
Há coisas que ainda não é hora de abrir.

Me vou. Vamos?
O que será que há além daqui?

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Do portão da casa

segunda-feira, agosto 2nd, 2010

Abri o portão
O coração rangeu.
Rangeu
dentro de mim
e eu sorri
como um lavrador sorri
com seu rosto de terra
e a boca rasgada de riso
diante da terra lavrada.

Abri o portão partido. Partiu-me
em dois horizontes.
Em dois gomos de um fruto fugaz.
Igual e desigual.

Abri o portão da minha casa.
E a ferrugem (ou seria orvalho?)
desatou o nó da palavra
pendurada por um fio
no fundo da garganta.

Abri o portão da casa de minha infância.
Mapa dobrado dentro de mim
desdobrado,
mapa mudo
onde afundei
em areia movediça
palavra por palavra.

Abri o portão da casa.
A boca do jardim, a travessia
do mundo.
O tempo fendeu
dentro e fora de onde vim
e espatifou as asas de papel
que vesti em mim.

Manchei roupa, amor e ávidos tatos
em polpa de fruto proibido.

Puiu-se a pele nova na vivência,
no corpo dividido.
Entre sonhos, frêmitos, tristuras
e o real vivido.

Pois ainda que sonhe o tempo todo
ter o tempo de encontrar a verdade
em minhas mãos,
nada sei de mim
além de fotografias estampadas no jornal.
E pouca coisa mais saberei
ainda que acredite o contrário a cada instante
e que meu campo de batalha comigo mesmo
dure a vida inteira deste sonho
como dura o sonho a vida inteira
e, muitas vezes, se projete
além do horizonte aberto
do portão,
pouco mais ou nada mais
saberei.

A caixa vazia
de um velho relógio colonial
desliza sobre as águas do rio Itajaí-Açu
entre a lua cheia partida
e a nuvem veloz.

E todas estas palavras
e outras tantas nem escritas nem ditas
(esfacelada luz de uma estrela sem face nem foice)
fazem parte da minha biografia transparente.
Nada menos
nada mais.

Lindolf Bell, poeta catarinense pouco conhecido fora de suas terras, apesar de sua densa obra.

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quero quero quero

terça-feira, junho 15th, 2010

sim, quero mais, muito mais,
e daí?

por isso me movo, rosno, mordo
– antes a ferida aberta que o ser estagnado

por isso canto e ouço

não tenho metas, retas
somente ideais, curvas e setas

não quero me embalar em papel celofane
– me cansam as exigências do mundo
(por onde passo distraída enquanto observam vitrines)

eu quero a sorte de um amor tranquilo
com sabor de pera mordida

quero olhares entregues e mãos abertas
sonos pesados e passos leves

quero a terra livre e o diálogo franco

quero

quero

quero

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Tudo meu

quinta-feira, abril 1st, 2010

Sinto que penso que sei o que acho que sonho
Ouço o silêncio noturno contar-me segredos do tolo e do rei

Fecha os olhos
Sente o cheiro
A rosa que surge na praça brotou no cimento e se ergue no ar

A poesia, a rua, o beco
o castelo e o pedreiro
a bruxa e o cocar

É tudo meu
É meu cantar

O tempo parado na sala
o pão e a mortalha
o medo de amar

É tudo meu
É caminhar

É o equilíbrio entre o chão e o Universo
na tênue linha que corta o ar

Mal sei o que sou,
identidade entre névoas,
pistas discretas indicam meu Eu

Cultivo com carinho
os retalhos que me criam
colagem efêmera de fotografias de Deus

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Para quem?

terça-feira, janeiro 26th, 2010

Casa de Cultura de Paraty, eu e os funcionários

Nos quadros que retratam a colonização,
somente nomes de pintores europeus

“Engraçado que é sempre os outros que contam a nossa história”, desabafei

… silêncio …

“Não tem arte indígena?”

“Ahn?”

“Arte indígena.”

“O quê??”

“A-r-t-e i-n-d-í-g-e-n-a!”

“Acho que tem uma peça de artesanato lá em cima.
Mas foram os espertos que contaram a história.
Os índios não tinham papel e pincel.”

Artesanato indígena
no chão das ruas

Arte branca
em galerias e museus

Pedras, igrejas
e casarões coloniais
Macaquinhos pulando
sobre telhados e quintais

Montanhas de Mata Atlântica,
porto e cachoeira
Paraty, mas não para aqueles
de pele amarela e negra

Paraty, gringo
Paraty, elite branca

Paraty

mas não para nós

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Livra o nome de inúteis sons

segunda-feira, outubro 26th, 2009

Livra o nome
de inúteis sons
de letras a mais
ou a menos

Livra o destino
do nome gravado
Do nome escrito
em areia do tempo,
no imutável tempo
do nome

Livra a alma
de escudos, estrelas demais
De tudo supérfluo,
de toda superfície,
do aluamento do ser

Livra a liberdade
de todo lastro
De qualquer lustro
De vocábulos insólitos, grandiloqüentes,
feitos de nada,
vocábulos de enfeite, confeitos

Livra-te do palmo de terra
que te cabe
De panfletos do sentimentalismo
Dos improvisos da paixão

Livra-te de ti
antes de tudo
Livra-te a fio de navalha
Livra-te a fio de idéia
que da dor faz palha

Livra-te de idéias fixas
Porque a dor alheia
também é nossa

Lindolf Bell

Poeta catarinense, pouco conhecido fora de suas terras, apesar de sua densa obra. O primeiro de alguns poemas dele que disponibilizarei aqui.

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O Homem e o Tempo

segunda-feira, outubro 12th, 2009

Ele sonhava encontrar o Tempo
tirar suas sandálias
e convidá-lo a cear

O diálogo seria o silêncio
sem pratos, sem mesa
Ele e o Tempo
sentados no chão de luar

Na fogueira da criação
assariam seu jantar
comeriam a vida, a morte
e a semente do recomeçar

Ele sonhava encontrar o Tempo
enquanto o Tempo é o próprio sonhar

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Mais poemetos

segunda-feira, setembro 7th, 2009

De mim

Dona de mim?!
Não sou dona de nada.

Deslizo em minhas vontades,
Escalo os meus sonhos,
Transito entre meus medos,
Disfarço meus enganos.

Fumo cigarros na descontinuidade do silêncio.
Tomo café em xícaras sem asas.
Meus sentimentos, não os controlo:
Surgem de mim e viram minha casa.

Minha mãe diz que tenho um urso dentro de mim
Um urso que se conforta na solidão.

Sou filha de mim;
Dona, não.
.
.
Eterealidade

Não sei se me pertenço;
Esse sonho é meu,
Ou será de quem?

A realidade insiste em parecer real.
Há um rato na cozinha.
.
.

Matéria composta de vazio
Ondas invisíveis, visível solidão.

O abstrato toma forma
E se liquefaz.
.
.
Linguística

Infindável dedicação:
perceber e catalogar ideias.

Em vão.

Pássaros amarrados não voam.

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Poemas descobertos – Prostituição moral

domingo, agosto 30th, 2009

Esse é da época em que eu trabalhava num banco aí…
nos idos de 2004.

Prostituição moral
vendendo minha dignidade
pra sair desse lixo
a chegada à “liberdade”
se resume a isso.

Sonhos contados em moedas
enquanto estou nessa prisão sem celas
trabalho maquinal, lavagem cerebral,
luta cotidiana pra deixar tudo igual.

Pra fugir dessa vida
que planejaram pra mim
tenho que me prostituir,
engolir meu desprezo e sorrir.

Me esforço pra não esquecer quem eu sou
não posso deixar a mesquinhez me sugar
queria não estar onde estou
mas esse é o preço que tenho que pagar.

Medo e consumismo
combustível dessa máquina
que quer me esmagar
culpam o terrorismo
mas é a pressão desse sistema
que não deixa respirar.

Minha vida há de ser mais que uma tarja magnética.

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Poemas descobertos – Apocalíptico*

terça-feira, junho 2nd, 2009

*Estava procurando uns textos sobre o imaginário incaico. Não achei, mas encontrei esses poemas, pra minha surpresa (como Amelie Poulin, que encontra o esquecido e antigo tesouro de uma criança e possibilita o emocionante encontro de um homem com a sua infância). Não, esses poemas não são da minha infância – escrevi-os durante a faculdade, com aquele sentimento de que “alguma coisa está fora da ordem”… Aí vai o primeiro (não estão em ordem cronológica – em verdade, estão rabiscados em folhas soltas. Emocionante. Pedaçinhos de um eu que, em sua totalidade, já não existe mais).

Apocalíptico

Perdão,
eu não vou mais dançar essa dança,
esse ritmo é sério demais.

Perdão,
mas eu quero viver no meu ritmo,
porque escondido no meu íntimo
estou sofrendo demais.

Com meus sonhos inconcretos
fico preso entre os muros de concreto,
com minhas asas enroscadas no cimento
eu não consigo lutar.

Um dia a cidade há de cair
e os sonhos vão se libertar.

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