Trechos de Porta para o infinito, de Carlos Castaneda. São Paulo, Círculo do Livro.
As condições de um pássaro solitário são cinco:
Primeiro, que ele voe ao ponto mais alto;
Segundo, que não anseie por companhia, nem a de sua própria espécie;
Terceiro, que dirija seu bico para os céus;
Quarto, que não tenha uma cor definida;
Quinto, que tenha um canto muito suave.
(San Juan de la Cruz, Dichos de luz y amor)
p. 21
Contei a Don Juan que naquela ocasião eu também tive a noção de que parar o diálogo interior implicava algo mais do que simplesmente cancelar as palavras que eu me dizia. Todo o meu processo de pensar havia parado e eu me sentira praticamente suspenso, flutuando. Essa noção me provocara uma sensação de pânico e tive de recomeçar meu diálogo interior, como antídoto.
– Já lhe disse que o diálogo interior é o que nos prende à terra – disse Dom Juan. – O mundo é isso e aquilo somente porque falamos conosco dizendo que ele é isso e aquilo.
Don Juan explicou que a passagem para o mundo dos feiticeiros se abre depois que o guerreiro aprende a parar o diálogo interior.
– Modificar nossa concepção do mundo é o ponto nevrálgico da feitiçaria – disse ele. – E parar o diálogo interior é o único meio de conseguir isso. O resto é só enchimento. Agora você está em condições de saber que nada do que você viu ou fez, com a exceção de ter parado o diálogo interior, poderia só por si ter modificado alguma coisa em você, ou em sua concepção do mundo. A condição, naturalmente, é que essa modificação não seja perturbada. Agora, você pode compreender por que o mestre não domina seu aprendiz. Isso só provocaria obsessão e morbidez.
Trechos de “O absurdo e a graça”, autobiografia de Jean-Yves Leloup. Campinas, SP: Verus Editora, 2003.
p. 8
Não receio ser muito espiritual ou muito humano. Receio não ser nem um nem outro ou não ser o bastante. Receio faltar humanidade em minha busca de Deus e faltar espiritualidade em minha vida cotidiana.
Estes fragmentos de um itinerário desejam ser o testemunho de um homem na busca de sua inteireza, que não pisa no ego em nome do Self, que mesmo estando muito saturado pelo seu ego não esquece oSelf. Um homem inteiro é também um homem que, após ter fugido de sua sombra ou tê-la negado, acaba por aceitá-la e amá-la como a si mesmo. Penso frequentemente em Francisco de Assis, o belo cavaleiro que um dia desce de sua montaria para beijar o leproso… Ele beija o que então lhe causa mais medo, o que se mantém na raiz de suas aversões mais profundas e aí, no âmago da sombra encarnada, reconhece o Cristo vivo… Mas aceitar a sombra não é comprazer-se nela: Francisco volta do seu beijo ao leproso com lábios de luz… Frequentemente me ocorreu ter descido do cavalo e desabado na sombra… para o encontro de um outro sol.
p. 13
Cada família tem o seu fantasma – aquele de quem não se fala, aquele que se crê tenha desaparecido para sempre nos escaninhos da memória. Mas, às vezes, as crianças estão mais próximas dos mortos que dos vivos, mais próximas dos espíritos que dos corpos que as envolvem; elas têm traços de cordas no coração, nós que suas mãozinhas jamais teriam sabido amarrar. O homem nasce velho e levará muito tempo para se tornar jovem. Eu nunca fui tão velho quanto em minha juventude. Para mim, é fácil crer carregarmos dentro de nós estrelas mortas, sendo suficiente cavar um pouco nas camadas tão mal-exploradas do inconsciente para nelas encontrar a memória do universo.
“Como era seu rosto antes do nascimento de seus pais?”, pergunta o koan zen. Sabe-se realmente de onde se vem? Nasci do encontro hesitante de dois códigos genéticos veiculados, mais ou menos amorosamente, por Jean-Claude e Pierrette? Sou uma velha alma errante, atraída pelo arfar do abraço amoroso que se introduziu sub-repticiamente no útero a fim de terminar uma obra recusada muito cedo? (Veja o Bardo Thodol). Sou um bodisatva, um verbo feito carne, de volta ao mundo para trabalhar no despertar das criaturas ou sou, simplesmente, uma ilusão, um murmúrio das ondas, um eu composto que vai se decompondo, a bolha de um grande sabão mergulhando na água morna do tempo…?
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Em tudo se vê a palavra amor,
mas quase ninguém fala de Amor.
Afinal, cartas de Amor são ridículas.
Tão ridículo, esse tal de Amor.
Nos faz perder o controle de tudo.
O controle que supomos crer que existe.
Não, o Amor não faz perder o controle.
Antes faz ruir mentiras.
Um pouquinho de verdade e já se cessam os diálogos.
Verdades são rudes. Acabam com os jogos.
Amor, esse labirinto onde já não sabemos mais o que é verdade ou projeção.
O que é Eu e o que é o Outro.
O Amor que sinto não é só meu.
Carrego comigo a ternura das moléculas que se apaixonaram e criaram a vida.
Os séculos e séculos de patriarcado e casamentos de violência e medo.
A amargura de minha vó.
Poucos ousam bater na porta do Amor.
Poucos ousam pular abismos.
Poucos ousam abraçar demônios,
a única maneira de criar asas.
As pessoas estão muito ocupadas para amar.
As pessoas estão muito distraídas para amar.
As pessoas estão muito ansiosas para amar.
O desafio do dar sem nada querer receber
enquanto o coração se estraçalha no peito.
O limite entre a generosidade e a auto-preservação.
Não posso dar o que já não tenho.
O sangue é rico. Mas acaba.
Faz um ano que te amo
e tô quase morrendo de amor.
Vivendo de amor.
Um ano morrendo e vivendo de amor.
Quanta coisa mudou nesse um ano.
Quanta coisa em mim mudou.
Como mudou esse amor.
Como o amor nos muda.
O amor é uma muda que cresce
e faz nascê fulô.
Fulô no meu peito.
Com perfume de tu.
O amor mudou a cor dos meus olhos.
É luz que atravessa meu prisma-retina
e se transforma em todas as cores.
O amor me deu olhos de caleidoscópio.
É que a gente sabe que a gente precisa
mudar a gente pra mudar o mundo.
E que o mundo muda a gente.
Mudar o mundo com amor.
Sentir o amor do mundo. Da vida. Do cosmos.
O nosso amor.
(Essa muda que cresce e muda).
O amor que sinto pelo mundo
pelo céu
pelo rio
por você
é
um
só.
É que seu coração é tão bonito!
Eu quase consigo ver.
Enso. Shibayana Zenkei (1894-1974)
Trechos de A arte cavalheiresca do arqueiro zen, de Eugen Herrigel (SP: Pensamento, 2011).
“Nós, os mestres arqueiros, dizemos: um tiro, uma vida! Talvez lhe seja difícil compreender isso, mas posso ajudá-lo com outra imagem que expressa a mesma vivência. Nós dizemos que com a extremidade superior do arco o arqueiro trespassa o céu; na inferior está suspensa, por um fio de seda, a terra. Se o tiro for disparado com violência, existe o perigo de que o fio se rompa. Para o voluntarioso e agressivo, o abismo será, então, definitivo, e ele permanecerá no centro fatal, entre o céu e a terra, sem jamais vir a conhecer a salvação.”
“Então, o que devo fazer?”
“Tem que aprender a esperar.”
“Como se aprende a esperar?”
“Desprendendo-se de si mesmo, deixando para trás tudo o que tem e o que é, de maneira que do senhor nada restará, a não ser a tensão sem nenhuma intenção.”
[p. 51]
Temos que ser ágeis para alcançar a liberdade e livres para recuperar a agilidade primordial. Essa agilidade primordial é diferente de tudo o que se entende vulgarmente por agilidade mental.
Entre o estado de relaxamento psíquico de um lado e o da liberdade espiritual por outro, existe uma diferença de nível que o ato de respirar, por si só, não pode compensar. Para perdermos o eu, é necessário cortarmos todas as amarras, sejam quais forem, para que a alma, submergida em si mesma, recupere todo o poder da sua indizível origem.
[p. 54]
O aluno que tenha todas as possibilidades de progredir encontra-se diante de um perigo que é muito difícil de ser evitado durante seu desenvolvimento. Não se trata de se perder num narcisismo estéril, porque o oriental tem pouca predisposição à egolatria, mas de achar que o que já sabe é suficiente, principalmente se obteve êxito e fama naquilo que fez. Assim, ele corre o risco de se comportar como se a existência artística fosse uma forma de vida nascida e justificada espontaneamente em si mesma. O mestre sabe desse perigo. Cautelosamente, com sutis recursos psicológicos, trata de prevenir a tempo e de liberar o aluno de si mesmo. Faz com que ele perceba, sem insistir, como se se tratasse de algo secundário – e referindo-se à própria experiência do aluno -, que a criação autêntica só é possível num estado de desprendimento de si mesmo, durante o qual o criador não está presente como ele mesmo.
Somente o espírito deve estar presente, numa espécie de vigília que prescinde do eu mesmo e que pervade todos os espaços, todas as profundezas, com olhos que ouvem e ouvidos que veem.
[p. 65]
“Compreende agora”, perguntou-me o mestre certo dia, depois de eu haver dado um tiro especialmente feliz, “o que quer dizer algo dispara, algo acerta?”
“Temo”, respondi-lhe, “que já não compreendo nada. Até o mais simples me parece o mais confuso. Sou eu quem estira o arco ou é o arco que me leva ao estado de máxima tensão? Sou eu quem acerta no alvo ou é o alvo que acerta em mim? O algo é espiritual, visto com os olhos do corpo, ou é corporal, visto com os do espírito? São as duas coisas ao mesmo tempo ou nenhuma? Todas essas coisas, o arco, a flecha, o alvo e eu estamos enredados de tal maneira que não consigo separá-las. E até o desejo de fazê-lo desapareceu. Porque, quando seguro o arco e disparo, tudo fica tão claro, tão unívoco, tão ridiculamente simples…”
“Nesse exato momento”, interrompeu-me o mestre, “a corda do arco acaba de atravessá-lo por inteiro.”
[p. 86]
“Mas devo advertir-lhes de uma coisa: ao longo desses anos, vocês dois sofreram uma modificação profunda. Essa é a consequência do tiro com arco: uma luta do arqueiro contra si mesmo, que lhe penetra nas últimas profundidades. Talvez ainda não se tenham dado conta do que estou lhes dizendo, mas sem dúvida concordarão comigo quando se reencontrarem com seus amigos. Não haverá a mesma vibração em uníssono de antes, pois vocês passaram a ver as coisas de maneira diferente e a medi-las com parâmetros até então não utilizados. O que estou lhes dizendo aconteceu a mim e a todos os que são tocados pelo espírito dessa arte.”
[p. 90]
O mestre espadachim reencontra a segurança ingênua do principiante, aquela serenidade perdida no início da aprendizagem, mas recuperada e por ele absorvida como um traço dominante da sua personalidade. Porém, ao contrário do aprendiz, é reservado, sereno, modesto, despido de qualquer presunção. Entre o estágio de noviciado e de “mestrado”, transcorreram longos e fecundos anos de incansáveis exercícios. Sob a influência do Zen, a habilidade se espiritualizou e o praticante dessas artes se transformou, vencendo-se a si mesmo e de si mesmo se libertando por etapas. Desembainha a espada apenas nos momentos inevitáveis, porque ela se converteu na sua alma, evitando, porém, lutar contra um adversário indigno, que se vangloria dos seus músculos, não deixando de receber, por causa disso, um sorriso que o acusa de covardia. Mas também pode acontecer que, movido por um grande respeito pelo adversário, convida-o a uma luta que terminará com a morte deste. Por detrás dessas atitudes estão os sentimentos que caracterizam a ética do samurai, esse incomparável caminho do cavaleiro conhecido pelo nome de bushidô. Mais alto do que a glória, a vitória e a vida, o mestre espadachim coloca a espada da Verdade, que ele conhece e que o julga.
Como o principiante, ele não conhece o medo, mas, ao contrário do discípulo, torna-se cada vez mais completamente indiferente a tudo o que possa amedrontá-lo*. Através de longos anos dedicados à meditação ele descobriu que, no fundo, a vida e a morte são uma única coisa, e que ambas pertencem ao mesmo plano do destino. Ele não sente nem a angústia de viver, nem o temor da morte. Apraz-lhe – e isso é característico do espírito Zen – viver no mundo, mas está sempre preparado para abandoná-lo, sem que a ideia da morte o perturbe. Não foi por casualidade que o samurai escolheu a flor de cerejeira como o seu símbolo. Assim como a pétala, refletindo o pálido raio de sol matinal, se desprende da flor, o homem intrépido se desprende, silenciosa e impassivelmente, da existência.
Viver sem medo da morte não significa que, durante as horas felizes, nos gabemos de não tremer diante dela, nem que possamos afirmar que a enfrentamos com segurança. Porém, quem domina a vida e a morte está livre de todo temor, a tal ponto que não é mais capaz de experimentar a sensação de medo. E quem não conhece, por experiência própria, o poder da meditação séria e prolongada não pode imaginar as vitórias sobre nós mesmos que podemos obter. Seja como for, o mestre verdadeiro revela sua coragem com atitudes, jamais com palavras. Quem o conhece não pode deixar de se impressionar profundamente. São raras as pessoas que conseguem manter uma inabalável impassibilidade, e que só por isso devem ser chamadas de mestres.
* A alegria de viver é um dos mais venerados princípios do Zen-budismo, pois só através dela seus adeptos sabem que podem vencer o seu inimigo mais forte: o medo. (N. do T.)
[p. 99-101]
Todo mestre de uma arte influenciada pelo Zen é como um relâmpago gerado pela nuvem da verdade universal. Essa verdade está presente na livre mobilidade do seu espírito e naquilo que se chama de algo, onde ela se mostra na sua plenitude e essência originais. Nessa fonte que jamais seca, suas potencialidades adormecidas se nutrem de uma compreensão da Verdade que, para ele e para os outros através dele, se renova perpetuamente.
Porém, pode ocorrer que a suprema liberdade não se converta numa necessidade imperiosa para o mestre. Apesar de haver se submetido pacientemente a uma dura disciplina, não alcançou ainda o nível onde estaria imerso na compenetração do Zen, de maneira que, conhecendo apenas horas felizes, sua vida seja guiada por ele. Na hipótese de que essa meta o atraia, tem de voltar a percorrer o caminho da arte sem arte. Tem que dar o salto em direção às origens para que viva a Verdade, com quem está intimamente identificado com ela. Tem que voltar a ser aluno, a ser principiante, tem que vencer o último e o mais escarpado obstáculo do caminho, passando por novas metamorfoses. Se sair vitorioso dessa longa jornada, então seu destino se consumará no encontro com a Verdade inquebrantável, com a Verdade que está por cima de todas as verdade e com a amorfa origem de todas as origens: o Nada que é o Tudo. Que ele o devore e dele receba uma nova vida!
[p. 103-4]
Trechos de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (Rio de Janeiro: Rocco, 1998), de Clarice Lispector.
Muitos trechos. Alguns bem longos. Maravilhada e chocada com tamanho mergulho. Respira fundo.
NOTA
Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.
C. L.
sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro
– pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver. (p. 14-5)
Ele era um homem, ela era um mulher, e milagre mais extraordinário do que esse só se comparava à estrela cadente que atravessa quase imaginariamente o céu negro e deixa como rastro o vívido espanto de um Universo vivo. Era um homem e era uma mulher. […]
Ah! gritou-se muda de repente, que o Deus me ajude a conseguir o impossível, só o impossível me importa!
Nem sequer entendeu o que queria dizer com isso, mas como se tivesse sido atendida no maior apelo humano e de algum modo, só por desejá-lo, tivesse tocado no impossível, disse baixo, audível, humilde: – obrigada.
Através de seus graves defeitos – que um dia ela talvez pudesse mencionar sem se vangloriar – é que chegara agora a poder amar. Até aquela glorificação: ela amava o Nada. A consciência de sua permanente queda humana a levava ao amor do Nada. E aquelas quedas – como a de Cristo que várias vezes caiu ao peso da cruz – e aquelas quedas é que começavam a fazer sua vida. (p. 27)
“Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.” (p.29)
Trecho de A erva-do-diabo: as experiências indígenas com plantas alucinógenas reveladas por Don Juan, de Carlos Castañeda. Grifos meus.
Tudo é um entre um milhão de caminhos (un camino entre cantidades de caminos). Portanto, você deve sempre ter em mente que um caminho não é mais do que um caminho; se achar que não deve segui-lo, não deve permanecer nele, sob nenhuma circunstância. Para ter uma clareza dessas, é preciso levar uma vida disciplinada. Só então você saberá que qualquer caminho não passa de um caminho, e não há afronta, para você nem para os outros, em largá-lo, se é isso o que seu coração lhe manda fazer. Mas sua decisão de continuar o caminho ou largá-lo deve ser isenta de medo e de ambição. Eu lhe aviso. Olhe bem para cada caminho, e com propósito. Experimente-o tantas vezes quanto achar necessário. Depois, pergunte-se, e só a si, uma coisa. Essa pergunta é uma que só os muito velhos fazem. Meu benfeitor certa vez me contou a respeito, quando eu era jovem, e meu sangue era forte demais para poder entendê-la. Agora eu a entendo. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho tem coração? Todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum. A pergunta de meu benfeitor agora tem um significado. Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece.
[…]
– Digo que é inútil desperdiçar a vida num caminho, especialmente se esse caminho não tiver coração.
– Mas como é que se sabe quando o caminho não tem coração, Don Juan?
– Antes de segui-lo, você faz a pergunta: “Esse caminho tem coração?” Se a resposta for não, você o saberá, e então deve escolher outro caminho.
– Mas como saberei ao certo se um caminho tem ou não coração?
– Qualquer pessoa sabe disso. O problema é que ninguém faz a pergunta; e quando o homem, afinal, descobre que tomou um caminho sem coração, o caminho está pronto para matá-lo. Nesse ponto, muito poucos homens conseguem parar para pensar e deixar o caminho.
– Como devo fazer para perguntar direito, Dom Juan?
– Pergunte, apenas.
– Quero dizer, existe um método apropriado para não mentir a mim mesmo, acreditando que a resposta é sim quando na verdade é não?
– Por que haveria de mentir?
– Talvez porque no momento o caminho seja agradável.
– Isso é tolice. Um caminho sem coração nunca é agradável. Tem até de se esforçar muito para segui-lo. Por outro lado, um caminho com coração é fácil; não demanda esforço para gostar dele.
Trechos de O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Companhia das Letras, SP, 2005.
p. 49
[…] Mas fala-me do meu filho, que soubestes do meu filho, Nada, só aquelas mesmas palavras tuas que, num relâmpago, me pareceram conter outro sentido, como se olhando pela primeira vez um ovo tivesse a percepção do pinto que leva dentro, Deus quis o que fez e fez o que quis, é nas suas mãos que está o meu filho, eu nada posso, Em verdade, assim é, mas estes são ainda os dias em que Deus partilha com a mulher a posse da criança, Que depois, se for varão, será minha e de Deus, Ou só de Deus, Todos o somos, Nem todos, alguns há que estão divididos entre Deus e o Demónio, Como sabê-lo, Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, Quê, Que partes divina demoníaca as compõem, que espécie de humanidade transportam dentro de si, Não te compreendo, pareceu-me que estavas falando do meu filho, Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um de nós é este pouco e este muito, esta paz e esta guerra, revolta e mansidão.
p. 53
Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas duma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo.
p. 61
[…] era como se o mundo se tivesse recolhido, dobrado sobre si mesmo, pudesse o mundo ser representado por uma pessoa e diríamos que cobrira os olhos com o manto, escutando apenas o passo dos viajantes, tal como escutamos o canto de pássaros que não podemos ver, ocultos entre os ramos, eles, mas nós também, porque assim nos estarão imaginando as aves escondidas na folhagem.
p. 73
Angustiado, confuso, postado diante do túmulo da esposa mais querida de Jacob, o carpinteiro José deixou cair os braços e pender a cabeça, todo o seu corpo se alagava de um frio suor, e na estrada, agora, não passava ninguém a quem pudesse pedir um auxílio. Compreendeu que pela primeira vez na sua vida duvidava do sentido do mundo, e, como quem renuncia a uma última esperança, disse em voz alta, Vou morrer aqui. Talvez que estas palavras, noutros casos, se fôssemos capazes de pronunciá-las com toda a força e convicção, como se supõe que é a dos suicidas, estas palavras poderiam, sem dor nem lágrimas, abrir-nos, por si sós, a porta por onde se sai do mundo dos vivos, mas o geral dos homens padece de instabilidade emocional, uma alta nuvem o distrai, uma aranha tecendo a sua teia, um cão que persegue uma borboleta, uma galinha que esgaravata a terra e cacareja chamando os filhos, ou algo ainda mais simples, do próprio corpo, como sentir uma comichão na cara e coçá-la, e depois perguntar-se, Em que estava eu a pensar.
p. 75-6
Às tantas, o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer um de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas.
Já perto de Jerusalém, na íngreme ladeira, a família confundiu-se com a multidão de peregrinos e vendedores que afluíam à cidade, todos parecendo querer ser os primeiros a chegar, mas, por cautela, moderando a pressa e refreando a excitação à vista dos soldados romanos que, aos pares, vigiavam os ajuntamentos, e de um ou outro grupo da tropa mercenária de Herodes, onde podia se encontrar de tudo, recrutas judeus, evidentemente, mas também ideumeus, gálatas e trácios, germanos e gauleses, a até babilónios, com a sua fama de habilíssimos arqueiros. José, carpinteiro e homem de paz, combatente dessas pacíficas armas que se chamam plaina e enxó, maço e martelo, ou pregos e cavilhas, tem, para com estes ferrabrases, um sentimento misto, muito de temor, algo de desprezo, que não o deixa ser natural, nem mesmo na simples maneira de olhar. Por isso vai passando de olhos baixos, e é Maria, aquela que sempre está metida em casa, e nestas semanas mais resguardada ainda, oculta numa cova, onde só é visitada por uma escrava, é Maria quem tudo vai olhando em redor, curiosa, com o queixinho levantado de compreensível orgulho, pois leva ali o seu primogénito, ela, uma fraca mulher, mas muito capaz, como se vê, de dar filhos a Deus e a seu marido. Tão irradiante vai em sua felicidade que uns toscos e brutos mercenários gauleses, louros, de grandes bigodes pendentes, armas postas, mas afinal, supõe-se, de tenro coração diante deste renovo do mundo que é um jovem mãe com o seu primeiro filho, estes guerreiros endurecidos sorriram à passagem da família, com podres dentes sorriram, é certo, mas o que conta é a intenção.
p. 78
Vão entrar pela Porta da Lenha, uma das treze passagens por onde se chega ao Templo, e que, como todas as outras, tem em proclama uma lápida insculpida em grego e latim, que assim reza, A nenhum gentio é permitido cruzar este limiar e a barreira que rodeia o Templo, aquele que se atrever pagará com a vida. José e Maria entram, entra Jesus levado por eles, e a seu tempo sairão a salvo, mas as rolas, já o sabíamos, vão morrer, é o que quer a lei para reconhecer e confirmar a purificação de Maria. A um espírito voltaireano, irónico e irrespeitoso, se bem que nada original, não escaparia o ensejo de observar que, vistas as coisas, parece ser condição para a manutenção da pureza no mundo existirem nele animais inocentes, rolas ou cordeiros sejam. […] À entrada estão os levitas à espera dos que vêm oferecer sacrifícios, porém neste lugar a atmosfera será tudo menos piedosa, salvo se a piedade era então compreendida doutra maneira, não é só o cheiro e o fumo das gorduras estorricadas, do sangue fresco, do incenso, é também o vozear dos homens, os berros, os balidos, os mugidos dos animais que esperam vez no matadouro, o último e áspero grasnido duma ave que antes soubera cantar.
p. 87
Foi tão subtil a mesquinha ideia, como uma luz velocíssima que surgisse e desaparecesse sem deixar memória imperativa duma imagem definida, que José nem vergonha chegou a sentir, esse sentimento que é, quantas vezes, porém não as suficientes, nosso mais eficaz anjo-da-guarda.
p. 97
Como vindo da garganta de uma ave invisível, um assobio passou no ar, também poderia ter sido um sinal de pastor, não fosse a hora ser esta, quando todos os gados estão dormindo e só os cães velam. Porém, a noite, calma e distante, alheada dos seres e das coisas, com essa suprema indiferença que imaginamos ser do universo, ou a outra, absoluta, do vazio que restar, se algo o vazio pode ser, quando estiver cumprido o último fim de tudo, a noite ignorava o sentido e a ordem razoável que parecem reger este mundo nas horas em que ainda acreditamos ter sido ele feito para receber-nos, e à nossa loucura.
p. 101
Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa de uma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor.
p. 131
Deus não perdoa os pecados que manda cometer.
p. 137
[…] dizemos, Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, Foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. […] Quis saber o comandante da força o que ia fazer aquela caterva de rústicos a Séforis, responderam-lhe, A ver o fogo, explicação que satisfez o militar, pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência o fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz de uma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido.
p. 159
[…] isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade.
p. 211
[…] Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo.
p. 223
[…] Nenhuma salvação é suficiente, qualquer condenação é definitiva.
p. 257-8
Se eu não acreditasse em ti, não teria de viver contigo as coisas terríveis que te esperam, E como podes saber tu que me esperam coisas terríveis, Não sei nada de Deus, a não ser que tão assustadoras devem ser as suas preferências como os seus desprezos, Onde foste buscar tão estranha ideia, Terias de ser mulher para saberes o que significa viver com o desprezo de Deus, e agora vais ter de ser muito mais que um homem pra viveres e morreres como seu eleito, Queres assustar-me, Vou-te contar um sonho que tive, uma noite apareceu-me em sonho um menino, de repente apareceu vindo de parte nenhuma, apareceu e disse Deus é medonho, disse-o e desapareceu, não sei quem fosse aquela criança, donde veio e a quem pertencia, Sonhos, Ninguém menos do que tu pode dizer a palavra nesse tom, E depois, que aconteceu, Depois comecei a ser prostituta, Já deixaste tal vida, Mas o sonho não foi desmentido, nem mesmo depois que te conheci, Diz-me outra vez, como foram as palavras, Deus é medonho.
p. 265
[…] a ocasião pode sempre criar uma necessidade, mas se a necessidade é forte, terá de ser ela a fazer a ocasião.
p. 276
Maria de Magdala não conhece, de experiência sua, o amor de mãe pelo seu filho, conheceu, enfim, o amor da mulher pelo seu homem, depois de tudo, antes, haver aprendido e praticado do amor falso, dos mil modos de não amor. Quer a Jesus como mulher, mas desejaria querê-lo também como mãe, talvez porque a sua idade não esteja tão longe assim da idade da mãe verdadeira, a que mandou recado para que o filho voltasse, e o filho não voltou, uma pergunta faz Maria de Magdala, que dor irá sentir Maria de Nazaré quando lho disserem, porém não é a mesma coisa que imaginar o que ela própria sofreria se Jesus lhe faltasse, faltar-lhe-ia o homem, não o filho, Senhor, dá-me, juntas, as duas dores, se tiver de ser, murmurou Maria de Magdala esperando Jesus. E quando o barco se aproximou e foi puxado para terra, quando os cestos carregados de peixe escorrendo começaram a ser transportados, quando Jesus, com os pés na água, ajudava ao trabalho e ria como uma criança, Maria de Magdala viu-se a si mesma como se fosse Maria de Nazaré e, levantando-se donde estava, desceu até à borda do mar, entrou na água para estar com ele e disse, depois de beijá-lo no ombro, Meu filho. Ninguém ouviu que Jesus tivesse dito, Minha mãe, pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler.
p. 282
Aproximavam-se o barcos que tinham vindo da margem, acenavam com os braços os que vinham dentro, multiplicavam-se as bençãos e os louvores, e Jesus, resignado, disse, Vamos, o vinho está no vaso, é preciso bebê-lo. Não procurou Maria de Magdala, sabia que ela o esperava em terra, como sempre, que nenhum milagre alteraria a constância dessa espera, e um contentamento grato e humilde pacificou-lhe o coração. Quando desembarcou, mais do que abraçá-la, abraçou-se nela, escutou, sem surpresa, o que Maria de Magdala lhe disse num murmúrio, rente à orelha, o rosto contra a barba molhada, Perderás a guerra, não tens outro remédio, mas ganharás todas as batalhas […].
p. 292
[…] que a força da primavera seria nada se o inverno não tivesse dormido.
p. 327-9
[…] A inquisição é uma polícia e um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas falado antes, Esses foram lançados a fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.
O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi Pastor quem falou, Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus, e Deus, surpreendido, Uma proposta, tu, e que proposta vem a ser essa, o tom era irónico, superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer que não fosse o Diabo, conhecido e familiar de longa data. Pastor fez um silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto que uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado do que o céu, Então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar no mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu çeu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria se esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus, Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus […].
Quantas dúvidas brotam a cada certeza?
Quantos monstros se escondem debaixo de cada pele?
Quantas mentiras foram necessárias pra criar quem achamos que somos?
Os caminhos se bifurcam
eternamente
como fractais.
Belos e confusos.
Encantadores e tortuosos.
Quantas vidas seriam precisas
pra entender o que uma vida significa?
Leveza e dureza.
Sorriso e tristeza.
Tudo
confusamente
se equilibra
e se refaz.
Hoje eu tirei um cochilo no passeio público.
Céu azul, sol de um lado, lua crescente do outro.
As nuvens branquinhas se espichavam, vapor em dança.
O macaco exibido dava saltos espetaculares de galho em galho.
Tiozão aposentado sentadinho no banco, onde as horas não importam.
No gramado, um casal novo se pegandinho. Dois meninos. Um mendigo dormindo.
E eu tirando um cochilo.