Crônica do avião

Tenho certeza que nenhum mortal que tenha conhecimento da possibilidade moderna de voar seja indiferente ao avião. Medo ou fascínio, esse objeto é o centro de um universo paralelo. O ritual começa e termina nos aeroportos, espaços de transição entre o real e o imaginário, o aqui e o lá. Malas, check in, espera, souvenirs – e aquela costumeira inquietação de perder o voo, mesmo estando sentado em frente ao relógio esperando o momento de embarcar.

O caminho tubular até o avião, o “bom dia” sorridente das aeromoças e auxiliares de bordo, a procura do assento pré-determinado, a ginástica para se movimentar nesse espaço apertado e a breve espera – todos os procedimentos ritualísticos se desenrolam um a um, até que tudo esteja perfeito para que possamos, numa máquina pesadíssima, contrariar as leis naturais e alçar voo.

Eu sempre agarro firme nos braços da poltrona na hora de decolar e aterrissar – a turbina parecendo que vai explodir, a transição da corrida para o voo (e se passa um cachorro, um urubu entra na turbina, se a roda encontra uma pedra, se o mecanismo fatalmente falha?), a velocidade impulsionando o corpo, os pés se agarrando ao piso e uma breve prece, algo como “tudo vai dar certo”, às vezes seguido de um “amém”.

O pedido de proteção é o superego atuando, a percepção da vulnerabilidade e seu enfrentamento. Surge primeiro a auto-exaltação, a crença de que eu sou mais forte do que o destino ou a casualidade ou simplesmente a morte e que se eu me concentrar nada nunca jamais vai acontecer comigo. Seguem-se enxurradas racionais – estatísticas que comprovam que os aviões são bem mais seguros que os carros, e o fato de eu nunca ter conhecido alguém que tenha conhecido alguém que sofreu um acidente de avião completa a defesa. Mas aí vêm as lembranças do avião da Air France (maldita mídia sensacionalista), de diversos outros acidentes aéreos por todo o mundo que ocupam as manchetes periodicamente e dos inúmeros filmes de suspense e ação envolvendo turbulências, despressurização, quedas e mortes. Lost, Náufrago e Premonição que o digam, sem citar os 326 envolvendo o tema que já passaram na Tela Quente.

Neste duelo entre Deus e o diabo, a fé e a descrença, a auto-confiança vence o terror. A razão e o misticismo convergem num ponto: de quê adianta ter medo? Afinal, esse momento já vai passar (oras, não é sempre assim?) e logo estarei vendo piscininhas do tamanho de peças de lego e rios como filetinhos de água. Pronto, me convenci. E o avião decola. Frio na barriga. Olha, eu tô voando! O mundo está ficando para baixo e parece de brinquedo! Eu sempre me fascino (e sempre quero sentar na janelinha). Fruto da mentalização ou não, nenhum avião me deixou na mão (ou no chão). Que assim seja!

Após a tensão, a tranquilidade das nuvens.

Após a tensão, a tranquilidade das nuvens.

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