Carnaval ibérico: a saga

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De Barcelona, Carla e eu pegamos um voo para Lisboa. Lá encontramos Roberta, que há cerca de um semestre foi cursar mestrado em Economia Política nessas terras lusas. Depois de vários meses, as três amigas de Curitiba se encontravam novamente. Era véspera de carnaval, e uma odisseia se desenhava.

O plano original, esboçado em dezenas de emails, era alugarmos um carro para ir até o Marrocos, passando pelo sul da Espanha – carnaval no deserto. Mas com os acontecimentos políticos no norte da África, as pessoas começaram a apavorar a gente, principalmente porque seríamos três mulheres num país conhecido por sua cultura machista, onde um conflito generalizado poderia acontecer a qualquer momento. Eu e Roberta ainda cogitávamos ir logo após o carnaval – não seria nem um pouco mal vivenciar esse momento de transformação no mundo árabe, mas… pelo receio, pela distância, pela grana, pelo tempo… ficou para a próxima.

Carnaval na Europa?

Marrocos descartado, ainda faltava definir nosso roteiro. Estávamos nós e o mapa, e uma infinidade de possibilidades se desenhava. “Opa, vai ter show do Gogol Bordello aqui em Lisboa”, exclamou Roberta, que estava no computador. Com o entusiasmo geral, ela foi pesquisar em qual dia: 7 de março, segunda de carnaval. Foi assim que resolvemos enxugar nossa viagem definitivamente: saída de Lisboa e chegada a Sevilha na quinta, dia 03. Sexta, Granada. Sábado a segunda, Cádiz, que tem a fama de sediar um dos carnavais mais animados da Espanha. Segunda à noite deveríamos estar de volta a Lisboa, para o show do Gogol Bordello.

O detalhe é que Carla e eu chegamos na noite de 02 de março em Lisboa (aliás, recepcionadas por um delicioso “bacalhau com natas” feito por Bruno, colega de apartamento da Roberta que estuda gastronomia). Ou seja, no dia seguinte já tínhamos que partir. Roberta foi pra aula, eu fiquei responsável por comprar os ingressos pro show e fazer almojanta, a Carla foi atrás do aluguel do carro e dos hostels. Meio corrido mas deu certo, na noite de quinta estávamos na autopista de Portugal rumo a Sevilha.


Posto de gasolina self-service: o primeiro desafio. Como faz?

Fomos nos familiarizando à nossa guia de viagem, uma GPS portuguesa. A piada foi inevitável, mas no início até que ela nos guiou direitinho. Não foi muito difícil encontrar o hostel, só tivemos que esperar um bando de pessoas que caminhavam em baixo de um caixote de uns 5 por 8 metros, carregando-o e parando de tanto em tanto, desbloquearem a rua. Outros iam acompanhando a procissão. Tradições católicas medievais, fazer o quê.

Enfim, chegamos. Procuramos uma vaga para o carro, descarregamos as coisas e… não havia nenhum funcionário na recepção. Era meia-noite. Vasculhamos o hostel, e nada. Perguntamos para os hóspedes que estavam ali usando seus computadores – “tinha uma mulher ali, mas acabou de sair”, me informou um deles. Logo em seguida chegaram dois meninos brasileiros, de mochila nas costas, que também ficaram sem saber o que fazer. “Vamos esperar, qualquer coisa dormimos aqui nesses bancos”, disse um deles.

Resolvemos enfiar nossas coisas de volta no carro e passear na cidade – depois voltaríamos para ver se tinha alguém para nos atender. Andamos por ruelas antigas e fomos em alguns barzinhos. Quando a canseira bateu, voltamos ao hostel – a luz da recepção apagada, os meninos dormindo nos bancos. Hostel lazarento. E lá fomos nós, de madrugada, atrás de qualquer lugar para dormir – acabamos num hotel que, apesar de bastante modesto, não era assim tão barato. Qual será a grande mágica que um “s” faz no meio da palavra “hotel”? Ao menos dormimos bem e tomamos banho, prontas para um dia de pernada em Sevilha.

Sevilha e Granada

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Em Sevilha, descobri que no final da Vida tem um jardim

E foi bem gostoso passear pela cidade naquele belo dia de sol – caminhar por ruas entrecortadas por praçinhas com fontes, ver as construções de séculos atrás… E as riquezas proporcionadas pela colonização da América. É impossível não lembrar disso ao ver as igrejas grandiosas, as estátuas dos “herois colonizadores” – assassinos de índigenas, escravagistas! (Comecei a escrever sobre isso mas os parágrafos foram se alongando, as ideias se misturando… Por ora, continuemos a saga de carnaval, os devaneios merecem outro post).

Igreja em Sevilha: no século XVII, eles ainda discutiam se os nativos americanos tinham ou não alma

No final da tarde, fomos para Granada. Aí que conhecemos o complexo funcionamento de nossa amiga portuguesa. Antes de chegarmos ao centro antigo, onde ficava o hostel, ela já deu sinais de confusão. “Recalculando”, repetia. E nós rodando, rodando e rodando. Continuamos seguindo suas orientações, o que fazer… Finalmente viramos numa estreita rua de mão única, uma ladeira cheia de curvas, que nos levaria à região desejada. Tranquilo, fomos subindo. Mas que estranho… Os carros estão todos estacionados no outro sentido… Será que é contramão? Mas o GPS mandou a gente virar aqui! Mas os carros tão tudo pro outro lado! Vai buzinando, Rô! Tá vindo um carro!

Roberta enfiou o carro numa entrada de garagem, “desculpa, a gente não é daqui, o GPS nos enganou”. Coração batendo rápido. E agora, que fazer? E lá veio a motorista com seu pensamento brasileiro – “se a gente descer tudo isso, vamos ficar rodando de novo; vamos subir o que falta rapidinho, já tá acabando”. Saiu dando uma acelerada, eu com bem ele na mão. De repente aparece uma luz vindo do outro lado, puta que o pariu, “páaara Rô”, essa hora eu já estava gritando. A Rô subiu com o carro na calçada, “calma galera”, Carla tentando acalmar os ânimos. Dessa vez o cara do outro carro ficou puto. Um pedestre passou olhando, divertido com o absurdo da situação. Só restava rir.

Agora dava para ver o fim da rua – Carla foi andando até a esquina e deu sinal quando podíamos ir. Simples, dava pra termos feito isso antes, não é? Pois é… Mas não estou aqui para contar a linda história de pessoas que fazem tudo da maneira mais correta sempre. O que vale é aprender a lição e evitar repetir os mesmos erros, não é mesmo crianças? E assim continuamos, felizes de termos saído dessa enrascada e crentes que logo estacionaríamos o carro em frente ao nosso hostel. Doce ilusão. Foram horas rodando na cidade antiga – ruelas minúsculas, algumas proibidas para carros, quase todas de mão única. Mesmo parando para pedir informações, mesmo ligando para o hostel, não tinha como achar a bendita rua. Quando já não era mais humanamente possível dirigir naquele labirinto medieval, Roberta ligou pro hostel e pediu pro cara que trabalhava lá ir encontrar a gente. Afinal, estávamos perto, mas tínhamos que levar o carro junto. Maldição.

Ele chegou. Com um cachorro grande, preto e bonito – não havia entendido que estávamos de carro. Mas tudo bem, aquela hora não tinha problema algum, entraram ele e o cachorro. E, de fato, percebemos que nunca acharíamos o tal do hostel sozinhas. Era bem escondidinho, numa rua em que nem dava pra entrar com o carro. Chegamos, que alívio. Uma cerveja, por favor.

Ficamos conversando um pouco com as pessoas que estavam no hostel – uns da Austrália, outros dos EUA, outros europeus e nós brasileiras. As conversas nesses ambientes sempre começam em torno das viagens e do país de origem de cada um. Chamamos eles para saírem com a gente, mas o pessoal não tava animado. “Mas é sexta-feira de carnaval”, insisti. Acho que eles não entenderam a importância disso.

Depois de passar por alguns bares desinteressantes, paramos no Enano Rojo. Parecia uma taverna, deu saudade de Gato Preto. Na volta, comemos o melhor kebab do planeta Terra. Kebabs são sanduíches árabes feitos por paquistaneses (na Espanha) ou turcos (na França e na Holanda), sempre uma opção barata. Pedi um com falafel (bolinhos de grão de bico) e humus (pasta de grão de bico). Enorme, cheio de saladinhas, uma delícia.

As ladeiras de Granada

De noite já deu para reparar que Granada era bem interessante. De dia, ficamos encantadas. Várias ruelas onde só se anda a pé, ladeiras, casinhas antigas e bonitinhas – poderia-se dizer que é a Ouro Preto espanhola. Um outro cara que trabalha no hostel, um australiano que vive há 10 anos na Espanha, nos levou até o mirante. Alguns barzinhos com mesinhas pra fora, artesãos, músicos e uma linda vista da cidade – em especial, do castelo mouro na montanha à frente – a Alhambra, que infelizmente não conseguimos conhecer por dentro. Quando chegamos no mirante, estava também a polícia. Nosso amigo escondeu as duas garrafas de cerveja que havia comprado. Os artesãos guardaram seu trabalho. Os músicos silenciaram. Só faltou as flores murcharem.

Perguntei para ele se havia algum museu sobre a Guerra Civil Espanhola, afinal a cidade foi bombardeada. Ele disse que não, o que me deixou bastante confusa. Como não? Por que não? “As pessoas não querem lembrar disso, acredita-se que é algo a ser esquecido”, me explicou. Questionei se ele não achava que a história é importante justamente para que entendamos como as coisas aconteceram, inclusive para que algumas nunca tornem a acontecer. “Eu concordo, mas as pessoas daqui pelo jeito não”. Está certo que logo após o massacre a direita venceu a guerra, derrubando o governo democrático. Franco assumiu o poder em 1938, e com certeza ninguém tinha o direito de “lembrar”. Mas enfim, o ditador morreu em 1975, já deu tempo de tentar recuperar a memória. Em Madri, no Museu Reina Sofía, há diversas obras referentes à guerra. Realmente não entendi esse lance de Granada. (E fica uma dica para tentar entender um pouco mais essa questão espanhola).

Y tu loquita

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Nesse dia ficamos tristes com nosso roteiro apertado: que vontade de ficar mais em Granada! Que cidade gostosa e bonita e interessante! Mas… era hora de partir para pegar a noite do sábado de carnaval em Cádiz.

Milhares de pessoas fantasiadas. Milhares de pessoas bêbadas. Milhares de ruelas antiquíssimas que se entrecruzam. O carnaval em Cádiz de fato é único. São 10 dias de carnaval, começa na sexta e termina no outro domingo, mas os dias mais intensos são os dois sábados. Chegamos para o primeiro.

A ideia do carnaval de lá é as pessoas se fantasiarem em grupos e cantarem suas próprias canções. Tem muita gente que se fantasia e pronto, mas vimos alguns grupos cantando suas músicas pelas ruas, sem falar nos grupos mais especializados, que concorrem à “canção do ano”. Iniciamos nossa noite vendo a apresentação dos premiados, num grande palco montado na praça para onde confluem várias das pequenas ruas. O vencedor foi um grupo fantasiado de frutas.

Como já haviam nos advertido, ao contrário do que acontece no Brasil, o pessoal não dança muito. Bebe-se e canta-se; mas dançar, nada. Um pouco esquisito, mas tudo bem, resolvemos entrar no clima. E saímos cantando “yo loco loco, y tu loquita, yo loco loco, y tu loquita” e “pompompompom, pompompompom” – as duas únicas músicas que aprendemos a cantar.

No meio da multidão fantasiada, começamos a nos sentir mal. Chegamos de Granada e já fomos para a festa, não deu tempo de nos fantasiarmos. Estávamos conversando com um pessoal de Cádiz, e pedimos para as meninas se elas não tinham uma caneta, alguma coisa pra pelo menos fazermos uns bigodes. E assim foi. Já podíamos nos sentir efetivamente parte da festa.

No final da noite estávamos eu e Roberta atravessando o calçadão jogando futebol de latinha, interagindo com quem cruzasse nosso caminho. O mais engraçado foi quando encontramos um grupo fantasiado de jogadores de futebol – eles entraram no jogo, obviamente, e a Roberta deu um drible espetacular num deles, no meio das pernas, ô loco!

No dia seguinte, domingo, caprichamos. Fizemos uma pasta de urucum, passamos na cara, e cada uma se enfeitou com desenhos pretos. Devidamente fantasiadas, fomos assistir ao desfile vespertino. Os carros alegóricos eram completamente trash – dava pra ver que não era algo profissionalizado, mas organizado por grupos de pessoas que se juntam para deixar sua marca na festa. Por um lado é melhor assim, fica algo mais comunitário, bem diferente do carnaval espetacularizado que temos no Rio, por exemplo.


Roberta, Carla e eu: guerreiras

A noite de domingo deixou a desejar: esperávamos festa, mas as ruas estavam praticamente mortas. Devido às circunstâncias, dormimos cedo – assim daria tempo de acordar e cruzar o sul da Espanha e de Portugal no dia seguinte – tínhamos que entregar o carro até as 18h em Lisboa. E, às 21h, começava o tão esperado show.

De volta a Portugal

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Tudo teria dado certo, se não fosse um pequeno detalhe: havíamos deixado nossa querida GPS no modo que evita pedágios, e ela nos colocou em um bocado de confusões! Até chegarmos ao Cabo de São Vicente estava tudo bem. Depois disso, nos enfiamos em cada estradinha no meio do nada… Atravessamos vilarejos inóspitos, chegamos a uma ponte bloqueada – enfim, muita dor de cabeça. Por um lado, foi uma delícia andar por esses recônditos portugueses; mas sem saber direito por onde ir e tendo um prazo de chegada, foi bastante angustiante.

Eu não tinha coragem de partir numa caravela aí, não. Um vento daqueles e as ondas batendo com tudo nas falésias.

No final das contas, não chegamos em Lisboa a tempo de entregar o carro e estávamos esgotadas. Mais uma diária teria que ser paga, e foi uma correria danada para chegarmos a tempo no show. Antes de entrar na arena, compramos uma cerveja e fizemos uma brinde, para espantar toda a zica que estava sobre nossos ombros – era nossa grande noite. Estávamos as três, juntas, a um oceano de distância de nossa casa, desbravando novas terras e ares. Havíamos cruzado vários quilometros, atravessado países, na cara e na coragem. Somos guerreiras. Um brinde! A noite vai começar.

Os argentinos do Che Sudaka abriram o show. Logo depois, era a vez de Gogol Bordello – juro que era a primeira banda que vinha na minha cabeça quando eu pensava num show que gostaria MUITO de ir. E lá subiram eles no palco, o vocalista com uma camiseta do Brasil, além de tudo. Acho que foi porque era carnaval, sei lá, só sei que ele falou do Brasil, em português brasileiro, e cantou um trecho de “Morena Tropicana” – nós fomos ao delírio. Já estávamos apavorando, pois comparando com os portugueses, nós fazemos muita festa – inclusive havia um espaço vazio ao nosso redor, para que dançássemos (e não esbarrássemos).

Foi uma catarse, todo o estresse da viagem se transformou em pulos e gritos e gotas de suor. No final, com os pedidos de “mais uma”, eles tocaram mais umas cinco. Depois do show, ainda tínhamos muita energia, e creio que Lisboa nunca mais será a mesma.

No dia seguinte, a primeira frase foi: “ai, como dói”. E com um sentimento imenso de satisfação e cansaço, terminamos nossa jornada, o inusitado carnaval ibérico de três jovens brasileiras.

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3 Responses to “Carnaval ibérico: a saga”

  1. roberta disse:

    foi incrível! esqueceu-se de dizer dos confetes que jogamos ao ar na melhor noite do carnaval … e do Bacalhoeiro, o DCE de Lisboa!

  2. michele disse:

    Ah Rô, já ficou enorme o post, hehehe. Mas o Bacalhoeiro é de fato digno de nota!

  3. […] de nossa memorável viagem de carnaval, passei alguns dias em Lisboa na casa da Roberta. Li Levantado do Chão, do Saramago. Fui dos risos […]

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