O zen, a seta e o alvo


Enso. Shibayana Zenkei (1894-1974)

 

Trechos de A arte cavalheiresca do arqueiro zen, de Eugen Herrigel (SP: Pensamento, 2011).

“Nós, os mestres arqueiros, dizemos: um tiro, uma vida! Talvez lhe seja difícil compreender isso, mas posso ajudá-lo com outra imagem que expressa a mesma vivência. Nós dizemos que com a extremidade superior do arco o arqueiro trespassa o céu; na inferior está suspensa, por um fio de seda, a terra. Se o tiro for disparado com violência, existe o perigo de que o fio se rompa. Para o voluntarioso e agressivo, o abismo será, então, definitivo, e ele permanecerá no centro fatal, entre o céu e a terra, sem jamais vir a conhecer a salvação.”
“Então, o que devo fazer?”
“Tem que aprender a esperar.”
“Como se aprende a esperar?”
“Desprendendo-se de si mesmo, deixando para trás tudo o que tem e o que é, de maneira que do senhor nada restará, a não ser a tensão sem nenhuma intenção.”
[p. 51]

Temos que ser ágeis para alcançar a liberdade e livres para recuperar a agilidade primordial. Essa agilidade primordial é diferente de tudo o que se entende vulgarmente por agilidade mental.
Entre o estado de relaxamento psíquico de um lado e o da liberdade espiritual por outro, existe uma diferença de nível que o ato de respirar, por si só, não pode compensar. Para perdermos o eu, é necessário cortarmos todas as amarras, sejam quais forem, para que a alma, submergida em si mesma, recupere todo o poder da sua indizível origem.
[p. 54]

O aluno que tenha todas as possibilidades de progredir encontra-se diante de um perigo que é muito difícil de ser evitado durante seu desenvolvimento. Não se trata de se perder num narcisismo estéril, porque o oriental tem pouca predisposição à egolatria, mas de achar que o que já sabe é suficiente, principalmente se obteve êxito e fama naquilo que fez. Assim, ele corre o risco de se comportar como se a existência artística fosse uma forma de vida nascida e justificada espontaneamente em si mesma. O mestre sabe desse perigo. Cautelosamente, com sutis recursos psicológicos, trata de prevenir a tempo e de liberar o aluno de si mesmo. Faz com que ele perceba, sem insistir, como se se tratasse de algo secundário – e referindo-se à própria experiência do aluno -, que a criação autêntica só é possível num estado de desprendimento de si mesmo, durante o qual o criador não está presente como ele mesmo.

Somente o espírito deve estar presente, numa espécie de vigília que prescinde do eu mesmo e que pervade todos os espaços, todas as profundezas, com olhos que ouvem e ouvidos que veem.

[p. 65]

 

“Compreende agora”, perguntou-me o mestre certo dia, depois de eu haver dado um tiro especialmente feliz, “o que quer dizer algo dispara, algo acerta?”

“Temo”, respondi-lhe, “que já não compreendo nada. Até o mais simples me parece o mais confuso. Sou eu quem estira o arco ou é o arco que me leva ao estado de máxima tensão? Sou eu quem acerta no alvo ou é o alvo que acerta em mim? O algo é espiritual, visto com os olhos do corpo, ou é corporal, visto com os do espírito? São as duas coisas ao mesmo tempo ou nenhuma? Todas essas coisas, o arco, a flecha, o alvo e eu estamos enredados de tal maneira que não consigo separá-las. E até o desejo de fazê-lo desapareceu. Porque, quando seguro o arco e disparo, tudo fica tão claro, tão unívoco, tão ridiculamente simples…”

“Nesse exato momento”, interrompeu-me o mestre, “a corda do arco acaba de atravessá-lo por inteiro.”

[p. 86]

 

“Mas devo advertir-lhes de uma coisa: ao longo desses anos, vocês dois sofreram uma modificação profunda. Essa é a consequência do tiro com arco: uma luta do arqueiro contra si mesmo, que lhe penetra nas últimas profundidades. Talvez ainda não se tenham dado conta do que estou lhes dizendo, mas sem dúvida concordarão comigo quando se reencontrarem com seus amigos. Não haverá a mesma vibração em uníssono de antes, pois vocês passaram a ver as coisas de maneira diferente e a medi-las com parâmetros até então não utilizados. O que estou lhes dizendo aconteceu a mim e a todos os que são tocados pelo espírito dessa arte.”

[p. 90]

 

O mestre espadachim reencontra a segurança ingênua do principiante, aquela serenidade perdida no início da aprendizagem, mas recuperada e por ele absorvida como um traço dominante da sua personalidade. Porém, ao contrário do aprendiz, é reservado, sereno, modesto, despido de qualquer presunção. Entre o estágio de noviciado e de “mestrado”, transcorreram longos e fecundos anos de incansáveis exercícios. Sob a influência do Zen, a habilidade se espiritualizou e o praticante dessas artes se transformou, vencendo-se a si mesmo e de si mesmo se libertando por etapas. Desembainha a espada apenas nos momentos inevitáveis, porque ela se converteu na sua alma, evitando, porém, lutar contra um adversário indigno, que se vangloria dos seus músculos, não deixando de receber, por causa disso, um sorriso que o acusa de covardia. Mas também pode acontecer que, movido por um grande respeito pelo adversário, convida-o a uma luta que terminará com a morte deste. Por detrás dessas atitudes estão os sentimentos que caracterizam a ética do samurai, esse incomparável caminho do cavaleiro conhecido pelo nome de bushidô. Mais alto do que a glória, a vitória e a vida, o mestre espadachim coloca a espada da Verdade, que ele conhece e que o julga.

Como o principiante, ele não conhece o medo, mas, ao contrário do discípulo, torna-se cada vez mais completamente indiferente a tudo o que possa amedrontá-lo*. Através de longos anos dedicados à meditação ele descobriu que, no fundo, a vida e a morte são uma única coisa, e que ambas pertencem ao mesmo plano do destino. Ele não sente nem a angústia de viver, nem o temor da morte. Apraz-lhe – e isso é característico do espírito Zen – viver no mundo, mas está sempre preparado para abandoná-lo, sem que a ideia da morte o perturbe. Não foi por casualidade que o samurai escolheu a flor de cerejeira como o seu símbolo. Assim como a pétala, refletindo o pálido raio de sol matinal, se desprende da flor, o homem intrépido se desprende, silenciosa e impassivelmente, da existência.

Viver sem medo da morte não significa que, durante as horas felizes, nos gabemos de não tremer diante dela, nem que possamos afirmar que a enfrentamos com segurança. Porém, quem domina a vida e a morte está livre de todo temor, a tal ponto que não é mais capaz de experimentar a sensação de medo. E quem não conhece, por experiência própria, o poder da meditação séria e prolongada não pode imaginar as vitórias sobre nós mesmos que podemos obter. Seja como for, o mestre verdadeiro revela sua coragem com atitudes, jamais com palavras. Quem o conhece não pode deixar de se impressionar profundamente. São raras as pessoas que conseguem manter uma inabalável impassibilidade, e que só por isso devem ser chamadas de mestres.

A alegria de viver é um dos mais venerados princípios do Zen-budismo, pois só através dela seus adeptos sabem que podem vencer o seu inimigo mais forte: o medo. (N. do T.)

[p. 99-101]

 

Todo mestre de uma arte influenciada pelo Zen é como um relâmpago gerado pela nuvem da verdade universal. Essa verdade está presente na livre mobilidade do seu espírito e naquilo que se chama de algo, onde ela se mostra na sua plenitude e essência originais. Nessa fonte que jamais seca, suas potencialidades adormecidas se nutrem de uma compreensão da Verdade que, para ele e para os outros através dele, se renova perpetuamente.

Porém, pode ocorrer que a suprema liberdade não se converta numa necessidade imperiosa para o mestre. Apesar de haver se submetido pacientemente a uma dura disciplina, não alcançou ainda o nível onde estaria imerso na compenetração do Zen, de maneira que, conhecendo apenas horas felizes, sua vida seja guiada por ele. Na hipótese de que essa meta o atraia, tem de voltar a percorrer o caminho da arte sem arte. Tem que dar o salto em direção às origens para que viva a Verdade, com quem está intimamente identificado com ela. Tem que voltar a ser aluno, a ser principiante, tem que vencer o último e o mais escarpado obstáculo do caminho, passando por novas metamorfoses. Se sair vitorioso dessa longa jornada, então seu destino se consumará no encontro com a Verdade inquebrantável, com a Verdade que está por cima de todas as verdade e com a amorfa origem de todas as origens: o Nada que é o Tudo. Que ele o devore e dele receba uma nova vida!

[p. 103-4]

 

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