Primeiras palavras desde Europa

Já se passaram mais de 45 dias de viagem – Fórum Social Mundial em Dakar, depois España e agora Portugal, e até então não escrevi aqui. Primeiras letrinhas tão difíceis de sair. São imagens, situações, diálogos, transformações. Pedaçinhos de vida que teimo em conectar com palavras. Relembrar e inventar, eis o que nos resta. Damos a isso o nome de memórias.

No Senegal, território ao extremo oeste da grande Mama África, contribuí com textos e fotos para a Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada, na tentativa de transmitir um pouco do Fórum Social Mundial 2011 e da cultura senegalesa e africana. Lá passei 15 intensos dias, de choque cultural, aprendizado, construção coletiva e, de certa forma, retorno às raízes. África triste e linda, tão forte e tão pobrinha!

Meu voo Senegal-Brasil fazia escala em Madri. Aproveitei essa oportunidade para conhecer o velho continente, vontade tão antiga que já tinha ficado de lado – a paixão latino-americana teve (e tem) prioridade. Contudo todavia entretanto… queria ver como é essa terra, colocada como modelo a ser seguido, desenvolvimento a ser atingido; de onde saiu a versão oficial da história, de onde saíram nossos colonizadores e correntes culturais e filosóficas até hoje influentes em terras tupiniquins (como em todo o mundo).

E nem só de interesses sociais-antropológicos vive esse meu coração. Por motivos afetivos também cá estou, visitando amigos que se lançaram a esse outro pedaço de mundo, em busca de novos ares, conhecimento, evolução e oportunidades. E ainda por questões curiosísticas e turísticas, pois. Conhecer é preciso, e prazeiroso.

España de mi vida


Frio e tranquilidade no Parque del Retiro, Madrid

Cheguei em Madrid com meu amigo Marco Amarelo, companheiro de Ciranda e Senegal, irmão soyloquiano. Ficamos na casa de Pablo, que alguns anos antes havia passado mais de mês na República Socialista Soylocoporti, onde moravam alguns companheiros de coletivo em Curitiba. Já de cara Pablo nos contou um pouco da conjuntura política da Espanha, da situação dos imigrantes, dessa guinada à direita na Europa, e até voltamos um pouco no tempo – a ebulição anarco-socialista-comunista e a Guerra Civil Espanhola na década de 30, a confusão pós-Franco e essa estranha monarquia de rei simbólico.

Pablo hoje mora com mais dois amigos, que estudaram no mesmo colégio na infância. Os três recém passaram a marca dos trinta anos e, por coincidência ou não, deixaram seus empregos estáveis e promissores para trabalhar com o que realmente acreditam e gostam. Ao menos tentar descobrir. Diego está se dedicando à agroecologia; Luís agora estuda cinema; Pablo trabalha com arte-educação. O apartamento tem um terraço, onde estão começando uma hortinha.

Nosso anfitrião nos indicou ir à Tabacalera, centro cultural que iniciou como uma ocupação, mas que conseguiu licença e apoio do governo para atuar. Contudo, o contrato com o Estado está chegando ao fim, e o povo que se envolveu nessa está tendo que rebolar para inventar como continuar… Conhecemos essa realidade, não é mesmo colegas ativistas da cultura? Tirei algumas fotos da Tabacalera, que estão aqui.

Fomos a outra “ocupa”, passamos em frente a mais uma, e por essas iniciativas, assim como cartazes e mensagens de teor crítico nas ruas, pude perceber que há desejo de mudança, e iniciativas que buscam outras formas de convívio entre seres humanos e seu meio. Ué… Mundança? Mas não estamos no “primeiro mundo”? Esse não é o estágio a ser atingido pelas bárbaras nações do sul? Querem mudar o que, se tudo vai tão bem? Parece que não é bem assim. Alguns problemas são bastante parecidos com os nossos, mesmo que adquiram características diferentes dependendo do local.

Desemprego. Trabalho alienado. Redução de direitos. Cultura “fast-food”. Monopólio do poder político, de tomada de decisões. Crises existencias do ser humano, que não consegue se encontrar num mundo onde a coisificação e a automatização imperam não só na indústria, mas no cotidiano. Crises materiais do ser humano, que se desloca ou se acomoda para ter o necessário para sobreviver (algumas distrações incluídas). Mesmo se a subviver.

Me senti a jeca-tatu em alguns momentos. Tem que apertar um botão para que a porta do metrô se abra? Como comprar os tickets nessa máquina? E essa descarga, como funciona? Cadê o lixo? Joga o papel na privada mesmo? Et cetera, et cetera, et cetera. O lance das máquinas, em especial, me fez pensar a exclusão digital desse mundo. Não sabe lidar com máquinas? Ou aprende ou perdeu, playboy. Vovozinho, é melhor o senhor se atualizar. É para o seu bem. E nosso. As coisas funcionam melhor assim. Não, não, seu conhecimento não nos é mais útil. São os tempos ultra-pós-modernos. Que maravilha, a civilização!

Por Madrid


Periferia de Madrid, morada de imigrantes

Madri é grande, toda interligada por linhas de metrô, cheia de museus interessantes, bares, vida. Gostei muito do Museu Reina Sofía (e tirei fotos). Picasso, Dalí, Miró, fotografias, audiovisual. Riquíssimo. Y me gustó el Parque del Retiro. E de andar andar andar andar andar. E depois ir a um bar superar a canseira com caña y tapas – nada de violência, é só cerveja com aperitivos. Em alguns bares, você pede a bebida e as comidinhas acompanham, assim, de graça. Delícia.

E os espanhóis são muito animados, extrovertidos, só parecem falar com batatas na boca e são mais polidos, ou poderíamos dizê-los latino-americanos. Também não têm tanta ginga, mas vá lá, vá lá, cada canto tem seu jeito. Ah, e fui parar no bar mais underground de toda minha vida. Depois das 3 da matina poucos lugares têm licença para permancerem abertos. Esse era um deles. Um grande galpão, retangular e preto, o dj tocava um rock cujas músicas não conhecia, meio pro heavy, meio pro não sei o que lá, caras com moicano espetado, pessoas bêbadas, uma mulher de meia calça arrastão e roupa toda de couro vermelho, top e saia, que ficava dando seu espetáculo, uma dança de diva baqueada, pescando olhares de fãs. Comicamente bizarro.

Foi uma bela semana em Madri, minha primeira experiência em terras europeias. Fiquei uns dias na casa de Pablo, mas como os meninos são muito queridos mas meio desorganizadinhos, haviam esquecido que receberiam pessoas pelo Couch Surfing no período que eu ficaria lá. O Amarelo já tinha voltado para o Brasil, mas de qualquer maneira, para evitar superlotação, pedi abrigo na casa de dois amigos de Pablo, o catalão Pedro e o brasileiro Filipe – que fez uma paella deliciosa. Eu tentei fazer uma farofa para termos um jantar ibero-brasileiro, mas só tinha farinha de amendoim… Imagina só no que deu.

La bella Barcelona

Ai, ai, Barcelona… É de andar olhando pra cima, pros lados, o tempo todo, um interminável “oh!”. Mar mediterrâneo, arquitetura louca de Gaudí, ruazinhas, movimento, pessoas de todo o mundo, museus, parques, vistas – cada fachada e ruela mereceria uma foto. Lá encontrei a Carrrrla, que está estudando em Ferrara, ops, na Itália (ninguém conhece Ferrara, Carrrrla diz que é uma cidade desse tamanhozinho) e foi pras Espanha me encontrar. Hmmm, abraço amigo de saudade, que gostoso!

Arquitetura louca de Gaudí

Fizemos piquenique de frutas vermelhas na Barceloneta, que é a orla. Andamos de teleférico. Passeamos e passeamos até quase não aguentar de doer os pés. Fomos em lojas descoladíssimas com coisas incríveis que dá vontade de comprar tudo (ainda mais que era época de rebajas, a nossa tão querida liquidação), mas quase sempre resisti à tentação – “você é turista pobre, Michele, pobre”, é bom repetir essas coisas mentalmente, dão firmeza.

Eu fiquei na casa do alemão Markus e da grega Nasi, minha primeira experiência pelo Couch Surfing (aliás, por favor, interrompamos essa narrativa, uma salva de palmas ao Couch Surfing!). Pra quem não sabe, é um site pelo qual você se oferece para receber pessoas e/ou ser recebido. É só procurar alguém que more no lugar do mundo onde você deseja ir, entrar em contato, verificar as possibilidades e pluft, já é. Foi ótimo, fui muito bem recebida, tivemos bons papos e cafés da manhã. Já a Carrrrla ficou na casa de uma galera muito boa também, amigos de amigos, sabe o esquema, dois catalãos e dois brasileiros dividindo um grande e divertido apartamento.

O mundo é muito feio, mas também é bastante bom. Existem pessoas muito gentis. Conheci algumas delas, amigos indicam amigos que moram por esse mundão – e assim fui visitar um casal de brasileiros que está estudando em Barcelona, depois de três anos na fria Alemanha (tempo que não recordam com tanto carinho). E mais uma vez a conversa sobre o suposto modelo a ser seguido – se é assim, se o modo de vida europeu é o ideal, porque os brasileiros além-mar costumam querer voltar para o calor da sua terra? O que é qualidade de vida? Por que, mesmo com as dificuldades materiais, o primeiro mundo é mais visto como um trampolim pelos migrantes, não como novo lar?

Fica a pergunta, já fiz algumas reflexões, algumas mais virão, mas resposta pronta e embalada não há. Deixo esse e outros devaneios para o próximo post, onde contarei a saga do trio brasileiro Andraus-Schwabach-Torinelli no sul da península ibérica, além de considerações acerca das idiossincrasias lusitanas.

Veja mais fotos de Barcelona aqui

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6 Responses to “Primeiras palavras desde Europa”

  1. Daniel Caron disse:

    altas fotos querida! quero mais!!!

  2. Gui Araujo disse:

    Belo espirito viajante como sempre…
    Um grande beijo Michele!

  3. michele disse:

    ahô, queridos!

  4. Laila disse:

    Acho essa vida de mochileiro muito legal, tão bonita e difícil ao mesmo tempo. Gostaria de tê-la.
    Quando tenho tempo, leio os textos de vocês e sempre gosto.
    Abraços!

  5. michele disse:

    Nem é tao difícil… Basta nao entrar em desepero nos momentos difíceis e seguir a intuiçao pra saber em quem confiar 😉

    E a vida sempre acaba surpreendendo!

    Abraço!

  6. […] vou continuar a contar a história dessa viagem. É minha terapia, no mínimo. E algo me diz que eu só vou conseguir pintar um quadro do que vivi […]

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