Viajeros – No caminho de volta ao lar

Após aproximadamente um ano de viagem estou de volta a Blumenau, cidade onde nasci e vivi até os dezessete anos. É um estranho processo – voltar à casa onde morei por tanto tempo, rever meus pais, o clima e a vegetação que falam tanto de mim mesma. A palavra voltar não faz jus a essa experiência. Ao mesmo tempo em que tenho algumas características e padrões de comportamento que parecem ser eternos e sólidos como raízes, já não sou a mesma pessoa que entrou num ônibus para Assunção cerca de um ano atrás. O mesmo em relação às outras pessoas e lugares e aos dias. É sempre a mesma coisa, só que tudo diferente.

A última carona

Deixamos Porto Velho com o objetivo de pegar carona até Cuiabá; de lá eu seguiria para Teresina de Goiás, Thiago passaria por Campo Grande e depois me alcançaria em Goiás. O plano de carona não foi muito bem sucedido – em uma semana na estrada, acampando em postos de gasolina, só conseguimos uma carona longa, mas não o suficiente. Chegamos até Comodoro, no Mato Grosso, mais ou menos na metade do trajeto até Cuiabá. Nessas horas as economias são uma bênção. Decidimos nos separar ali mesmo, cada um seguindo de ônibus para o seu destino.

Anos depois, lembro do caminhoneiro que nos deu carona. Se não me engano o apelido dele era Tyson, e já tinha sido professor de alguma arte marcial. Ao entrar no caminhão ele pediu pra gente tirar os sapatos, falou que não era por mal e que já ficava como dica: o caminhão é como se fosse a casa do caminhoneiro. Ele ofereceu pagar rango pra gente, quando paramos pra descansar um pouco num boteco de estrada. Quase todos que nos deram carona, nas rodovias argentinas e brasileiras, ofereciam alguma coisa. Dessa vez não precisei aceitar, em outras foi a salvação. Ele contava histórias de namoradas, da família, da vida na estrada e de outros caminhoneiros. Falou muito da filha, e resolveu dar uma passada na sua casa, que era meio que no caminho, só para dar um abraço nela. Entramos na casa, tarde da noite, acho que a mãe dele que abriu o portão, alguém mais velho. Ele foi acordar a filha só para abraçá-la. Foi rápido, ele tinha que cumprir o prazo de entrega da carga. De volta ao caminhão, eu e Thiago capotamos – o caminhoneiro também estava cansado e deu uma indireta forte, que um dos motivos para dar carona era ter alguém para conversar e ajudar a tapear o sono. Endireitamos a coluna e nos esforçamos.

Mais umas boas horas no ônibus até Brasília. Passei a madrugada em cima de meu isolante na rodoviária da capital do meu país, agora sozinha – no dia seguinte partiria para Teresina de Goiás. O único café da manhã de rodoviária com cuscuz e fatia de melancia da minha vida (a desconstrução do conceito de Brasília sem nem sair da rodoviária). Estava tudo combinado para encontrar Manu, amiga que conheci em Curitiba e que tinha se mudado há pouco tempo para essa cidadezinha na Chapada dos Veadeiros. O primeiro aconchego de amizade antiga do trajeto – a volta já se anunciava.

Morte e vida no Cerrado

As árvores, melodramáticas, entortadas, parecem dançar. Muito sol, céu azul. Era época de seca, que costuma durar de abril a setembro. Peguei o que deve ter sido a última chuva até que comece a temporada das águas. Foram algumas singelas gotinhas que caíram do céu.

Nessa época a vida dorme, descansa no seio da terra. Os campos ganham cores marrom e pastel. E todo ano é assim. O cerrado se recolhe para renascer verde e florido. Mas mesmo na seca, apesar da morte aparente, há muita vida. A terra conta histórias de escravos fugidos, resistência, onças e cristais. As inúmeras nascentes cantam a alegria e a tristeza da vida. Kaliandra, a flor do cerrado, colore os sonhos da terra.

Passei um mês com os amigos de Teresina, experimentando tentar viver em harmonia com o meio, com o outro e comigo mesma. Assim é a corrente da vida: quando a gente pensa que ninguém vai nos entender, encontramos pessoas que compartilham da mesma busca. E ela enriquece, para todos.

Aproveitamos para conhecer um pouco mais da chapada antes de ir embora e ficamos alguns dias acampados em São Jorge. Visitamos cachoeiras conhecidas (e nas quais era possível chegar a pé) – o Vale da Lua e Raizama. Somente nós dois e as pedras recortadas por séculos e séculos de fluxo de água pura e gelada e a vegetação quase indestrutível e que parece eterna e todo o Universo.

Eu, o sol, as pedras e as águas. Imagem: Thiago Martins.

Os cristais estão por todo chão, nas estradinhas, no camping, na cidade toda. São Jorge , assim como toda a Chapada, segundo dizem, está em cima de uma imensa placa de cristais. É uma terra encantada.

MST, a luta é pra valer

Desde que surgiram os primeiros planos inconcretos dessa nossa viagem improvisada eu tinha vontade de visitar o acampamento do MST Padre Gino, em Minas Gerais, onde havia estado um ano e meio antes. Tinha participado do EIV-MG (Estágio Interdisicplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais), organizado por estudantes que já haviam passado pela experiência e militantes do movimento. A vivência é voltada para estudantes, que ficam cinco dias em formação, depois se espalham em duplas por diferentes regiões do estado e se juntam novamente para trocar informações e avaliar a experiência por mais cinco dias. É um estágio de quase um mês em que cada dupla conhece uma comunidade diferente do movimento. Thiago, que só tinha conhecido uma comunidade do MST lá em Maceió, quando participamos de uma atividade do ENECOM (Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicação) em 2005, gostou da ideia.

Chegamos lá sem avisar nem nada. A galera ficou muito feliz de eu ter voltado, pois segundo eles, é difícil os estudantes que participam do EIV voltarem para visitar os sem-terra que os receberam. E eu mais uma vez me surpreendi com o desprendimento das pessoas, a facilidade de demonstrar amizade, de se doar. Engraçado, a velha crença popular comprova-se verdadeira: quem menos tem é quem mais tem para dar. Thiago, em retribuição, fez a alegria da criançada oferecendo uma oficina de malabares.

Gente tentando construir uma sociedade diferente, que até parece ter o coração mais puro. Eles foram despejados mais uma vez esse ano. Passaram o Natal na beira da estrada. Alguns desistiram, mas muitos estão assentados em outras terras conquistadas pelo movimento. O Padre Gino já foi o maior acampamento da região, com mais de 700 famílias. Na primeira vez que fui eram 70. Agora são 30. Antes o acampamento contava com uma escola e duas igrejas, uma católica e outra evangélica – as três únicas construções de tijolo e cimento do acampamento, em volta do que era a “pracinha”, onde uma imensa árvore fazia sombra. Na última reintegração de posse a polícia destruiu tudo, inclusive as plantações. Faz alguns meses que eles reocuparam a terra. Começaram tudo do nada, mais uma vez, e agora esperam que chegue sua hora de serem assentados. A luta continua, assim como a alegria, estampada nos olhares – apesar de não ser nada fácil.

Minha amiguinha Helen

Dessa vez, me aproximei muito das crianças. Tão espertas, pequenos adultos. Em alguns casos, tinham uma destreza manual melhor que a minha. Tiveram que aprender a se virar, a ajudar. Os meninos fizeram um negócio que eu nunca tinha comido, um mingau salgado de banana verde. E a menina Helen, engraçada e maluquíssima, espevitada e doce, gostava de inventar histórias e de me ouvir inventar. E andavam pra lá e pra cá com seus novos brinquedos, os malabares de fitas.

Ele que fez o mingau de banana
Ana Maura, irmã mais velha de Helen. Menina doce e forte, que ficara minha amiga durante o estágio em 2005, primeira vez que estive no acampamento. Acho que ela tinha mais ou menos a minha idade, um pouco mais nova. Me contava as histórias do acampamento, mostrava onde alguns momentos marcantes do período de ocupação aconteceram, me levou na mangueira, “ô, Michele, não conhece mangueira não, vamo lá”, me ensinou um jogo de cartas que eles jogavam, me falava dos cursos que fez pelo movimento e de poesia. Namorava o Márcio, filho da Nega, senhora que me recebeu na primeira noite que cheguei no Padre Gino.

E essa primeira noite foi marcante. A casa não tinha luz, assim como todo o acampamento [só tinha um gerador que iluminava a escola e as igrejas, nos dias de missa e festa]. O banheiro era muito precário e eu não via nada, me segurei. Havia um cômodo só, a Nega dormia na cama de casal, e os filhos, 3 ou 4 meninos adolescentes ou jovens, nos beliches. Eu fiquei com um dos beliches. Deitei na cama, e no escuro do barraco, eu pensei “o que que eu tô fazendo aqui?”. Ouvia-se o zunido dos carros e caminhões que corriam na rodovia, a Rio-Bahia. Depois sentiria vergonha por ter desconfiado.

O acampamento todo fazia questão de me receber em sua casa – e nunca se monstravam ressabiados. Fiz vigília com eles uma noite. Na entrada do acampamento, tinha uma barraca de troncos com teto de palha. Eles trouxeram uma rede pra mim, cobertas, e eu que nem tentasse negar. E contaram histórias. “Antigamente era muito perigoso fazer vigília, hoje tá tranquilo – ó, tá tudo dormindo”. Sempre tem alguém na barraca da vigília, dia e noite, é uma das tarefas do acampamento, que eles organizam em reuniões, e ocorre por meio de revezamento.

Seu Joaquim. Eu e Elton, o outro estagiário que estava no Padre Gino, apelidamos ele de o “cientista político” do acampamento. Era o mais estudado, lia bastante, escrevia, gostava de estar informado, de debater os assuntos. Problematizava as dificuldades do acampamento, mas não participava muito. Me mostrou uns poemas seus, eu uns meus. Eles fizeram uma música – a letra do Seu Joaquim e Elton fez uns acordes, e acho que eu ajudei a inventar a melodia.

Uma senhora que eu não lembro o nome fez galinha caipira com farofa pra gente levar no ônibus, na volta. Dona Inês fez um bolo. Na última noite das um pouco menos de duas semanas que fiquei lá, dormi na casa dela [tinha que me revezar entre as casas do acampamento, para evitar ciúmes]. Ela só tinha uma cama de casal. Eu falei que obviamente eu dormiria em meu colchão no chão, sem problema. Ela disse que nem pensar, eu ficaria com a cama. “E a senhora?” No chão, disse. Falei que não, que no máximo a gente podia dividir a cama, eu não me importava, mas não fazia sentido nenhum ela dormir no chão. Mas não teve jeito, é difícil contradizer a autoridade das senhoras. Magrinha, negra, com um lenço na cabeça. Criava galinhas.

Também fiz farinha de mandioca no acampamento. Do processo todo, só não arranquei a raiz da terra. Ajudei a descascar, ralar [e ralei meu dedo também, tive que parar para não manchar a tapioca branquinha de vermelho], torcer toda a tapioca ralada num pano e finalmente secá-la num tabuleiro de metal sobre um fogão à lenha. Calorão. A melhor farinha de mandioca do mundo.

 

Igor e sua tia, irmã de Helen e Ana Maura

Dessa vez, Ana Maura estava casada com Márcio, e já tinham um filho lindo, o Igor. O clima do acampamento estava mais pesado que da primeira vez, nitidamente difícil aguentar a luta – e estar à mercê de tudo novamente, de perder sua casa, sua horta, ter que reconstruir o barraco, recomeçar do nada. É duro tanto ter que caminhar.

Aqui algumas fotos da primeira vez que estive no acampamento, em 2005.

Rumo ao sul

Passamos rapidamente por São Paulo para comprar fio encerado, o material básico do nosso artesanato – loucura na balbúrdia da 25 de março atrás de produtos baratos. Depois de tanto tempo no sossego da natureza, nos Andes, Amazônia, Cerrado, enfrentar essa megalópole foi chocante. A linha de prédios no horizonte parecia representações gráficas de batidas eletrônicas. Hostilidade, ritmo, velocidade, informação. Bits, ondas eletromagnéticas, buzinas, caos. Zumbis, farrapos, malabaristas da rotina e faraós engravatados.

De lá fomos para Florianópolis, onde moram minhas amigas de infância, família. Uma casa linda, com cachorro, lareira e quintal. Muito frio – julho em Santa Catarina. Tinha esquecido como o frio do sul corrói os ossos e torna a casa e o cobertor tão aconchegantes. Passei tardes e noites na sala com lareira fazendo macramê com minha amiga Ximba (ela se encarnou), pintando mandalas, assistindo filmes e aos jogos do Pan. Sossego. Chegamos ontem em Blumenau e no próximo sábado partimos para Curitiba.

É tanta coisa… Confesso que minha cabeça está um pouco confusa, meu estômago sente a ansiedade. Na maioria das vezes dramatizamos processos que ocorrem naturalmente, mas é difícil evitar especulações futuras.

Encontrar meus pais. Entrar no meu quarto de infância – a minha cama em L com a cama da minha irmã, as duas escrivanhinhas, a poltrona rosa no canto. As portas de madeira do armário, nas quais eu via desenhos e seres e cenas, e tinha medo. A quina da varanda onde eu sentava pra comer uma maçã depois do almoço.

Minha mãe fez uma mini festinha no sótão pra nos receber. Sem convidados, só nós e os enfeites mesmo. Ela alugou uma minitura da Moellmann, casa cartão postal de Blumenau que estava à venda nos últimos anos em que eu morava lá; eu falava brincando pra ela comprar pra mim, pra eu ir morar com minhas amigas. “Viu Mi, não comprei, mas aluguei.”

E depois disso, Curitiba. Amigos queridos, que passaram um “ano ordinário” de suas vidas, de rotina casa-faculdade ou casa-trabalho e algumas escapadas, tão diferente das minhas andanças. Iria conhecer novos velhos amigos. E uma nova velha cidade, uma nova velha vida.

 

Texto escrito em julho de 2007, parte do livro Viajeros, com exceção dos cometários em itálico, que fiz agora. (O que costuma ser um grande dilema pra mim, inteferir ou não interferir no meu próprio texto do passado? Tenho esse direito? Não estarei mentindo, de alguma maneira? Parece meio patético, mas é assim que me sinto, talvez um certo purismo, ou um capricho a la Leminski, não sei. Só sei que interferi horrores, rs.)

Tenho revisado o livro, que apresentei como TCC em 2007, nesse blog por meio de posts – tem desde o primeiro, desde o começo dessa viagem de um ano por caminhos dessa Sudamérica de mi corazón. Só falta mais um  post – a jornada está quase no fim. E me dá um carinho imenso reviver tudo isso e terminar esse ciclo mais uma vez. (Parece que só consigo assimilar o que vivi depois de repisar e pensar o vivido por meio de palavras.) Essa vida de estrada é muito viva. Dá saudade.

Veja o post anterior.

Veja o próximo post.

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2 Responses to “Viajeros – No caminho de volta ao lar”

  1. Manoela disse:

    Olha só, essa foto da thais..ficou linda!!

    E não é somente São Jorge que está em cima de uma placa de cristais..dizem que é chapada dos veadeiros como um todo, desde são joão da aliança, alto paraiso, são jorge, teresina de goiás, cavalcante e monte alegre!! Todos abençoados! hehee

    Lindo texto Mi, Me fez relembrar daqueles dias em teresina de goiás…ô saudade daquela casinha!

    beijos

  2. michele disse:

    Obrigada pela ilustre visita badu, fui muito feliz nos dias que passei naquela casinha tbm! Bjo!!

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