Insignificantes e sagrados ou A segunda versão do pecado original

“Esta vida é uma viagem pena eu estar só de passagem.”

Paulo Leminski

 


O terceiro monolito. Frame do filme 2001: A Space Odyssey.

Quero ler muitos livros, conversar com várias pessoas sobre várias coisas, conhecer muitos lugares, viver inúmeras experiências, ouvir milhares de músicas, fazer as conexões mais loucas dentro do meu consciente e inconsciente inseparáveis. Quero aprender astronomia, astrologias, agricultura, fazer tudo o que puder com cultura e comunicação, escrever de um todo e me transmutar sempre e mais. Quero me entregar a ritos ancestrais e me confrontar com ciências ocultas e tradições milenares. Quero conhecer várias maneiras de as pessoas viverem e se organizarem. Quero viver e me organizar de várias maneiras. Quero me libertar do relógio e da obrigação; da insegurança, da desconfiança, da auto-censura. Do medo e da culpa.

 

Alguns acham que eu não faço nada, passo a vida bem tranquila sem querer trabalhar.

Outros acham que estou sempre envolvida em mil projetos e mil viagens e mil sonhos e vontades.

Há ainda os que não se importam.

Todos eles estão certos.

 

Tantas e tantas ânsias que uma só vida vai ser pouco por demais.

Despertam o sonho da eternidade. Inveja de Deus?

 

As fascinantes versões da imortalidade, tediosa e maldita, de borges e beuvoir perdem seu sentido.

Não há maldição.

 

“Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe ideias de bem & mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo & a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização & todas as suas emoções mesquinhas.”*

 

Desipnotizada, eu seria imortalmente encantada.

Onde não há condicionamento, não há tédio.

 

A vida é cíclica. Não volta ao mesmo ponto.

A água evapora, a chuva cai, vira rio, vira planta, vira bicho, vira mar, vira terra e tudo seca e evapora e sobe aos céus.

E cai como chuva.

Outra chuva.

Jamais a mesma.

Jamais.

Nem uma segunda vez em toda a eternidade.

 

A sacralidade do instante – efêmero, irrecuperável.

O único real, mesmo com todo o passado e o imenso futuro a perder de vista no horizonte, por todos os lados.

O momento. Terra firme em meio ao eterno.

Eterno: o que não tem fim.

E o que não tem fim parece não ter começo.

Então… quem inventou os ponteiros?

 

“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”**

 

Ousar a  eternidade…

O segundo pecado original.

O terceiro monolito.

 

Tomaria o elixir. Sem medo.

Talvez com culpa.

Mas sempre há de se desvelar a culpa.

 

Não sei porque, mas sei que na eternidade

não há pecado nem perdão.

 

Mas… e se formos além da transgressão e subvertermos a pergunta: por que eu deveria durar para toda a eternidade?

Talvez a última transmutação, a superação do ego.

Essa afasta o desejo por qualquer elixir.

 

A sacralidade da vida,

irmã siamesa da insignificância do ser.

 

Se a gota insiste em ser sempre a mesma gota, não existe ciclo.

Nem vida. Nem eternidade.

 

Então que eu inflame e queime e arda. Até que me desfaça.

 

Insignificantes e sagrados.

Como uma vela que brilha, ilumina e se apaga.

 

 

 

* Hakim Bey, Caos: terrorismo poético e outros crimes exemplares

** Clarice Lispector, A hora da estrela

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2 Responses to “Insignificantes e sagrados ou A segunda versão do pecado original”

  1. Mari disse:

    Muito profundo!!!!

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