A poesia de “Grande sertão: veredas”

Trechos de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

VIDA

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (p. 51)

O senhor já sabe: viver é etcétera… (p. 110)

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia. (p. 334)

“Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia. (p. 414)

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. (p.429)

Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. (p.438)

A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. (p. 477)

Assim, de jeito tão desigual do comum, minha vida grangeava outros fortes significados. (p. 504)

Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. (p. 601)

 

 AMOR

Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte – assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível – o senhor represente. (p. 120)

 Então, eu vi as cores do mundo. […] Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites. (p. 164-5)

 Hê, de medo, coração bate solto no peito; mas de alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede. (p. 198)

 O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor…” Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim – que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas – de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava. (p. 307)

 […] o ódio – é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente. (p. 377)

 Quieto, muito quieto é que a gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a gente. (p. 480)

 O amor só mente para dizer maior verdade. (p. 503)

 

FILOSOFIAS DO SERTÃO

O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. (p. 39)

Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato… (p. 72)

Muita coisa importante falta nome. (p. 125)

Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. Mesmo dizia: “Senhor atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta…” Soante que dissesse: sempre o espírito é que mata… (p. 141)

Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?! (p. 165)

Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta. (p. 416)

Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga. (p. 200)

O que a noite tem é um vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono. (p. 438)

O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. (p. 458)

Tu não acha que todo mundo é dôido? Que um só deixa de dôido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor? Ou em horas em que consegue rezar? (p. 603)

Doidice. Em dansa de demônios, que nem não existem. (p. 618)

Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! E o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia. (p. 624)

 

PERSONAGENS: MULHER E PRETO VÉIO

Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silêncio, a cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo. Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricurí, por se tapar do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma esperança já completada. Deus que dele me livrasse! (p. 535)

Mas, no vir de cima desse morro, do Tebá – quero dizer: Morro dos Ofícios – redescendo, demos com o velho, na porta da choupã dele mesmo. Homem no sistema de quase-dôido, que falava no tempo do Bom Imperador. Baiano, barba de piassaba; goiano-baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho em seu paiol. Meio sarará. A barba, de capinzal sujo; e os cabelos dele eram uma ventania. Perguntei uma coisa, que ele não caprichou de entender, e o catrumano Teofrásio, que já queria se mostrar jagunço decisivo, o catrumano Teofrásio bramou – abocou a garruchona em seus peitos dele. Mas, que não deu tujos. Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito valor. Comigo conversou. Com tudo que, em tão dilatado viver, ele tinha aprendido. Deus pai, como aquele homem sabia todas as coisas práticas da labuta, da lavoura e do mato, de tanto tudo. Mas, agora, que tanto aforrava de saber, o derrengue da velhice tirava dele toda passança de trabalhador; e mesmo o que tinha aprendido ficava fora dos costumes de usos. Velhinho que apertava muito os olhos. […]

E o velho, no esquipático de olhar e ser, qualquer coisa em mim ele duvidava dela. Mas – que é que era? que é que era?! … Eu carecia de indagar. E, mesmo – porque a chefe não convém deixar os outros repararem que ele está ansiando preocupação incerta – tive de indagar leixo, remediando com gracejo diversificado: – “Mano velho, tu é nado aqui, ou de onde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?… ”

Bestiaga que ele me respondeu, e respondeu bem; e digo ao senhor:

– “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – …ele tira ou dá , ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.”

Respondeu com uma insensatez, ar de ir me ferir, por tanto; jacaré já! Respondeu, apontando com o dedo para o meu peito. Desgostou de meu debique? Dele o dito, eu não decifrava. Sertanejo sem remanso. Mas desabandonamos aquilo, às pressas, porque o velho assoava o nariz com todos os dedos de uma mão, em modo que me deu nôjo. Descemos flauteando o resto do morro. Quando chegamos cá no acampo, as ramas d’árvores já iam pegando o pó da noite. Ermo meu? (p. 535-7)

 

CONTAR ESTÓRIA

O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isso mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo logo se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? (p. 55)

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. (p. 200)

Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro. (p. 423)

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. (p. 616)

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One Response to “A poesia de “Grande sertão: veredas””

  1. Lourival Cristofoletti disse:

    Belo apanhado: lirismo por todos os poros

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