Viajeros – Bolívia: um outro mundo

Luz na Ilha do Sol.

Luz na Ilha do Sol.

Depois de três meses vamos deixar a Bolívia, esse lugar de cultura tão diferente, que eu pensei ter que viajar muito mais longe para encontrar. Um país que parece ter parado no tempo, que fascina a alguns e assusta a outros.

Ter a sorte de achar um estabelecimento que aceite cartão de crédito é como ganhar na loteria. Os ônibus são um tanto arcaicos (e as estradas então, nem se fale). As “mamitas” ainda usam suas roupas da época da colonização: saia rodada até o joelho, chapéu e tranças. É comum ver homens com a bochecha enorme e a boca verde. Mascam coca. Todos os brasileiros perguntam com excitação sobre a coca, como se fosse algo muito subversivo. Lá, faz parte da cultura cotidiana: a coca é a folha sagrada dos povos andinos, além de dar energia, abrandar a fome e ser bastante eficaz para aliviar os efeitos da altitude.

Vegetarianos, se preparem. Encontrar uma refeição sem carne, principalmente frango, é uma jornada. Pode-se comprar pães e frutas no mercado, mas se você é como eu, que não aguenta muito tempo sem uma refeição quentinha, vá aquecendo as pernas e a língua.

Inicialmente tentávamos assim: “olá senhora, tem alguma coisa sem carne?”, mas como a resposta era sempre negativa, mudamos de tática. Perguntávamos primeiro “o que tem para comer?”, e depois “dá para fazer a mesma coisa sem carne?”. Os vendedores olhavam com uma cara de “como sem carne?”, então explicávamos que existem comidas que não são carne, como um prato com arroz, batata e salada. A maioria respondia que não, outros aceitavam e até cobravam mais barato. Virávamos clientela fiel.

Copacabana e a Ilha do Sol

Em Tarija juntamos uma boa grana, suficiente para ir direto a La Paz comprar material para artesanato e seguir rumo a Copacabana. Passamos um dia e uma noite na capital boliviana. Após um bom tempo longe de metrópoles, foi um tanto quanto estranho ser engolidos pela selva de pedra.

La Paz tem regiões bonitas, mas paz que é bom eu não tive não. Pessoas apressadas e preocupadas, tragadas pelo cimento, asfixiadas pela fumaça. Thiago fez um pouco de malabares e disse que nunca tinha visto pessoas que pareciam tão sérias e tristes enquanto pedia contribuições.

Compramos passagem para Copacabana, às margens do lago Titicaca, pensando que curtiríamos uma praia. Até podia ser, se não fosse tão frio. Foi muito bom para vender, havia muitos turistas, mas descobri que no mundo do artesanato nem tudo são rosas. Existem os chamados “malucos de escola antiga”, artesãos que já estão há muito tempo na estrada, que às vezes têm um código de ética meio estranho.

Passamos o ano novo em Copacabana e já no dia dois de janeiro tomamos um barco para a Ilha do Sol. O barco chegou do lado turístico da ilha, dominado por albergues e gringos. Nós tínhamos a indicação de procurar Dom Tomás, um senhor que oferece quartos e permite acampamento do outro lado da ilha, onde só vivem alguns nativos. O problema é que entre nós e o outro lado havia uma dessas grandes montanhas andinas, a quatro mil metros de altitude, e tínhamos que carregar nossas mochilas de 75 litros lotadas de material, roupas e comida para acampar.

Pagamos todos os nossos pecados subindo, ainda ganhamos uns bônus celestiais descendo e enfim chegamos à casa de Dom Tomás, um senhor boliviano muito simpático. Ele fez algumas gracinhas e indicou onde poderíamos armar a barraca. Alguns artesãos argentinos já estavam lá, em volta da fogueira, esquentando água para o mate.

Ilha do Sol.

Ilha do Sol.

O acampamento era muito simples – o quintal do Seu Tomás. O banheiro era uma fossa e não tinha ducha, o banho era no Titicaca mesmo. Como a água era muito fria, confesso que em uma semana na Ilha do Sol encarei o banho só uma vez.

Criamos uma rotina juntos, nós e os argentinos. Aprendi muito com eles, em vários aspectos. Alguns deles viajavam de bicicleta, já tinham percorrido seu país e o Brasil. As meninas me passaram novos pontos de macramê e a convivência ensinou a ser mais fraternal, a dividir as coisas e a tomar iniciativa. Essas experiências comprovam que não importa o tempo que passamos juntos, sempre é possível fazer verdadeiros amigos.

O ambiente contribuía – a Ilha do Sol é deslumbrante, mágica. Lindo céu, lindo lago, lindas montanhas, um local sagrado para os incaicos. É um daqueles lugares que tenho certeza que vou voltar, com mais tempo para desfrutar.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Hasta luego, Bolívia

Um pouco estranho sair da Bolívia. Esse país nos ensinou muito, foi o cenário propício para intensas metamorfoses. Ao encontrar uma cultura tão diferente, alguns acham mais fácil tachá-la de bizarra. Tentar compreender exige mais tempo e paciência, mas é muito mais bonito.

Chiquita. Ilha do Sol.

Chiquita. Ilha do Sol.

A Bolívia é um país onde as tradições ainda estão vivas, onde a exploração colonial foi arrasadora e o neoliberalismo não encontrou grandes interesses. Uma nação explorada até por seus vizinhos, todos eles, que dentro do sistema de exploração se aproveitam dos ainda mais fracos. Mas esse povo cansou de ser fraco, cansou de ser explorado. Essa atitude se revela nos inúmeros conflitos e na difícil situação social na qual se encontra a Bolívia. Situação de mudança, de tomada de consciência, que infelizmente muitas vezes é confundida com revolta cega e sede de sangue.

Eu não entendi a Bolívia. Acho que nunca vou entender. Mas a aceitei, e aprendi a desfrutar de sua cultura tão distinta.

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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4 Responses to “Viajeros – Bolívia: um outro mundo”

  1. Érico disse:

    Michele!!!!
    Muito legal o texto e as fotos são sensacionais.!
    A Bolívia é algo inimaginável, um país fantástico!Vendo as fotos fiquei com muitas saudades de lá.

    Sobre a folha de coca,um histórico resumido:

    * 1912: A proibição internacional contra a folha de Coca inicia-se praticamente na chamada Convenção do Ópio, em La Haya em 1912
    * 1947: O governo peruano solicitou as Nações Unidas que enviassem ao Peru uma Comissão de pesquisadores para estudar e determinar o caratér nocivo da folha de Coca (Não seria da Cocaína ?). Tal comissão apresentou um informe igualando o mascado da Coca com o uso da Cocaína.
    * 1950: A Organização Mundial de Saúde, através do comité de Pesquisa em Drogas, determinou que a folha de Coca poderia gerar intoxicação
    * 1961: Celebrou-se em Nova York – e não poderia ser em outro lugar – uma reunião denominada Convenção Única de Entorpecentes que estabeleceu definitivamente o controle e erradicação da folha andina em um prazo de 25 anos, a partir da data.

    A folha de Coca no mundo Andino

    A Coca vem da palavra aimara Kkoka, que significa ‘arbusto’. Mas, a Coca não somente foi um alimento para o homem andino, assim como seu uso tradicional teve multiplas funções como de sobrevivência, integração e identidade étnica, todo o qual se viu reflexo em diversos aspectos da sociedade andina: econômico, religioso, cultural, medicinal e nutricional.

    As formas tradicionais de trabalho comunitário não seriam possíveis sem a Coca e os conquistadores espanhóis sabiam disso, ao ponto de utilizarem a folha de Coca como moeda de pagamento e como tributo no século XVI.

    A folha de Coca sempre foi parte integral do processo produtivo:no trabalho do campo, construção de infra-estrutura, transporte, mastigando-se antes, durante e depois do trabalho. Esta prática assumía um carater ritual quando realizava-se em forma comunitária.

    La Hoja de Coca no es Droga!

    A mãe natureza (Pachamama) deu ao mundo andino uma planta maravilhosa chamada ‘la hoja de Coca’, cujas as folhas tem sido usadas como alimento e medicina na região desde antes da fundação do Império Inca. O homem andino sempre a considerou como uma planta sagrada, por que a folha de Coca lhe proporcionava energias extraordinárias para vencer a geografia acidentada de seu habitát e por que curava todos seus males.

    Com a chegada dos conquistadores, a imagem sacra da Coca deixou de ter vigência. A Coca foi perseguida desde 1540, os espanhóis em sua missão de evangelizar os indíos, e em seu afã de acabar com as idolatrias, foram os primeiros a desprestigiar esta planta, oriunda do Peru e de toda região do altiplano andino, julgando a folha de Coca de maneira absurda e injusta, ao considerá-la como uma planta do ¨demômino¨.

    Vale a pena mencionar o trabalho acadêmico que fez o médico, literato e idealizador da Independência do Peru, Dom Hipólito Unánue Pavón (1755 – 1833), quem, apesar de existir mais de dois séculos de censura contra o uso da folha de Coca, foi o primeiro a fundamentar científicamente suas propriedades e utilizações benéficas, em seus diversos artigos publicados em seu periódico ¨el Mercurio Peruano¨ (1794), chamando-la ‘el architónico del Reino Vegetal’, exercendo uma grande defesa e difusão de seu consumo ( Livro La Coca, 2006, Miguel Zamora).

    Na atualidade as propriedades benéficas da folha de Coca são motivo de controvérsias, debates e criminalização de costumes milenares e originários, aonde muitos estudiosos da medicina a consideram como um alimento indispensável, e inclusive se atrevem a afirmar que no futuro próximo será uma grande alternativa contra a fome e a desnutrição, assim como a batata, outro grande produto Inca, o foi para a população européia na escasses de alimentos durante o século XVII. Assim como a rapadura e suas variáveis ajudaram a combater a desnutrição infantil no nordeste brasileiro, a folha de Coca e seus similares podem e devem extirpar a fome dos países latino americanos.

    Devemos ter em conta que a folha de Coca não é sinônimo de cocaína, muito menos de uso de drogas; por isso é necessário saber que a cocaína é um dos 14 alcalóides que compõem a folha de Coca, que além disso é composta por proteínas, vitaminas e minerais, e em sua forma natural, a folha de Coca, jamais poderá causar ‘adiccion’ (que consiste no consumo compulsivo da substância. Parece estar relacionado com o fenômeno da sensibilização, oposto a dependência, em que, o uso contínuo aumenta alguns efeitos das substâncias psicoativas. Com o passar do tempo o uso contínuuo diminue a tolerância), por ter em sua composição química a substância da cocaína, cuja a preparação, fabricação, comercialização organizada e consumo deram lugar a um monstruoso império do narcotráfico, cuja expansão mundial, vem causando preocupação em todos os estados e governos, a tal ponto de ter sido catalogada como o principal flagelo do século XXI. Fica claro que o problema está na maneira como o homem aproveita a folha. Da cobiça a criminalização da folha sagrada, na falta de sensibilidade com as culturas diferentes e no equivocado trato das drogas – como caso de polícia, violência e criminalização – os resultados mundiais só pioram, aonde o crime organizado e a lavagem de dinheiro não param de crescer.

  2. projetocancion disse:

    Pode crer, Érico. Lembro tbm que fui num festival de cultura da universidade de Cochabamba, na praça central. Havia barracas de estudantes que vendiam e indicavam como utilizar a farinha de coca (a folha em pó) em receitas, por ser altamente nutritiva.

    E todos q já foram para os andes podem comprovar como um chá de coca quentinho é bom quando se está desnorteado de altitude.

    Mas acima de tudo, a criminalização da folha de coca, sagrada para os povos andinos, é um exemplo de subjugação cultural absurdo.

    É triste ver preconceitos legitimados pelo status quo. Daí percebemos como nossa sociedade está baseada em alicerces ultrapassados.

  3. LUIZA MARILU disse:

    eu gosto muito desse povo

  4. Verônica B. dos Santos. disse:

    Oi Michele.
    Ano passado estive no Natal na Bolívia e não vi nada demais (como é mostrado sobre a cultura latina, principalmente em filmes norte americanos onde só se vê trafico, sexo e crimes), além da nítida percepção da exploração de um povo de uma forma até vergonhosa para nós que somos irmãos-vizinhos e o fazemos também, além da falta de respeito, quando deveríamos te-lo em maior valia pela nossa história de colonização tão par á eles, mas realmente reproduzimos as idéias preconceituosas de nossos colonizadores europeus em menosprezar nossa cultura. Nas terras destes povos, com estas evidências tão nítidas aos nossos olhos, fiquei e fico me preguntando oque é pior: os genocídios cometidos em larga escala ou a aculturação que sofremos dia-a-dia, perdendo o sentido de existência de um povo e o sentido de seus antepassados na beleza do viver. Talvez isso estabeleça a complexidade dos valores familiares atuais, já que todos sofremos a pressão da negação de nossas raízes. E me questiono de novo até quando esse massacre anestesiante creebral? Até quando continuaremos aceitando falsos valores e discriminações lendárias?

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