Em Resistencia, capital da província do Chaco, empreendemos nossa primeira tentativa de vender artesanato. Até então estávamos produzindo para juntar quantidade suficiente para expor. Paramos numa esquina movimentada, estendemos nosso pano, colocamos os colares e malabares e timidamente cumprimentávamos as pessoas que dirigiam alguma atenção ao nosso trabalho. Fizemos isso uns dois ou três dias, por cerca de duas horas. Não vendemos nada.
Nos alojamos no Parque Municipal e Camping Dos de Febrero. Lá conhecemos três artesãos – Keko e Andrés de Córdoba e a chilena Maribel. Eles nos falaram da Festa do Dourado, que iria acontecer em Isla de Cerrito no fim de semana, com a promessa de que lá seria bom para vender artesanato.
Festival em Isla de Cerrito. A bandeira do Brasil, nosso mostruário.
Isla de Cerrito é uma cidadezinha do interior, a 60 km de Resistencia. A Festa do Dourado é o grande acontecimento da cidade. Chegamos lá no dia 31 de agosto, uma quinta-feira. A festa iria de sexta a domingo. Durante todo o festival vendemos um colar. Cinco pesos, equivalente a cerca de três reais. Conhecemos vários artesãos de diversas partes do país. Uma vida simples, porém livre. Eles percorrem a Argentina vendendo seu trabalho e conhecendo gente. “É uma vida boa, para quem não é materialista”, me disse Santiago, um dos artesãos que conheci. Vivem com pouco e dividem o pouco que têm. Desprezam o luxo, amam a liberdade.
Artesãos malabaristas na Festa do Dourado.
De volta à estrada
Segunda-feira nos despedimos de nossos novos amigos. Pegamos o ônibus até Resistencia para pedir carona mais uma vez, com destino a Córdoba. Já era final de tarde; junto com a noite se aproximava a possibilidade de dormirmos mais uma vez na loja de conveniência do posto de gasolina, o mesmo onde tínhamos passado a noite há cerca de uma semana atrás depois de um dia inteiro pedindo carona sem sucesso. Quando já estávamos na expectativa de mais uma noite mal dormida, um caminhão que transportava gado parou. Impossível descrever a sensação de alívio que esse momento propicia.
Histórias de caminhoneiro
Marcelo era seu nome. Seu caminhão era bem equipado, moderno. Não parecia querer muita conversa. Entretinha-se com seus dois celulares, fazendo ligações e mandando mensagens. Tentei puxar assunto, mas ele não respondeu. Não sei se não me ouviu ou simplesmente me ignorou. De qualquer maneira, entendi o recado e fiquei na minha.
Uma foto pendurada chamava a atenção – uma linda mulher de tranças loiras e olhos claros. Devia ser alguma modelo ou atriz famosa, pensei. Até que ele nos perguntou: “Quantos anos vocês acham que ela tem?”. Chutamos uns vinte e poucos. “Ela tem dezoito anos, é a filha do meu patrão”, disse ele.
Eles se conheceram há três anos pela internet. Foram conversando sem saber suas identidades. Um dia ela comentou que seu pai era dono de uma empresa de caminhões – a empresa onde Marcelo trabalhava. Eles passaram a se encontrar e ela demonstrou interesse por ele. Ela tinha só quinze anos e era filha de seu patrão. Ela era rica, ele pobre. Marcelo sabia que isso traria problemas e tentou evitar o romance. Mas ela era tão linda…
Namoraram uns cinco meses escondidos. Como era inevitável, um dia ele foi falar com os pais dela, os seus patrões. “Eu estou com um problema amoroso”, disse ele. “Qual problema?”, perguntou a mãe. “É com sua filha, esse é o problema”, respondeu Marcelo. Os pais dela disseram que isso não era um problema. Disseram que ele era honesto, trabalhador, isso que importava. Eles mesmos já tinham sido pobres e aceitaram bem o romance da filha com o empregado.
Faz três anos que eles estão juntos. Ela lhe deu um carro e um caminhão novo, mas ele diz que isso não interessa, quem tem dinheiro é ela, ele continua pobre. E continua a tratar seu patrão da mesma maneira enquanto trabalha, mantendo o relacionamento patrão-empregado. Fora da empresa ele é seu genro, mas continua sendo seu chefe. Ela quer casar, diz ele que não tem pressa. E passou toda a viagem falando de sua namorada.
Nos deixou na cidade de Sé Pereira, em Santa Fé, perto da província de Córdoba. Confesso que em alguns momentos desconfiei do conto de fadas do rapaz. Talvez aquela foto fosse de uma modelo famosa e todo o resto, fantasia. Talvez.
Eram sete horas da manhã. Lindo nascer do dia. Fazia muito frio, o capim estava congelado. Paramos na saída da cidade, logo depois de um cruzamento com uma linha de trem – os carros eram obrigados a baixar a velocidade, impossível nos ignorar. Cerca de duas horas depois um caminhão parou. Horácio, o motorista, disse que podia nos deixar uns 100 km mais para frente. Aceitamos a carona.
O relevo sempre plano. Plantações de soja e trigo. Pasto. Ele, que tinha idade para ser meu pai, foi nos falando do problema da concentração de terra, dos grandes latifúndios, do mal que fazem os agrotóxicos, das diferenças regionais do país. O norte é a região mais pobre e a maior parte da riqueza do país se concentra em Buenos Aires.
Ele nos deixou na entrada de uma cidade. Almoçamos pão com queijo, especialidades argentinas, e seguimos nosso caminho. Tínhamos que andar até a saída da cidade e voltar à rodovia que leva a Córdoba. Caminhamos em torno de 7 km com as mochilas nas costas. Chegamos exaustos e o sol, mais uma vez, estava próximo de se por. Paramos perto de um posto – nosso abrigo, caso não conseguíssemos carona.
Mal levantamos o dedo e um caminhão parou. Walter era o nome do motorista. Estava indo para Córdoba. Muito simpático desde o início, nos ajudou a botar as mochilas na traseira do caminhão. Nos ofereceu mate e bolachas, mostrou a foto de seus filhos e nos contou um pouco da sua história.
Filho de italiano, sustenta sua família com o seu trabalho. Um de seus irmãos foi tentar a sorte na Itália – faz anos que não tem contato com ele. Seu irmão mais novo trabalha numa empresa que paga seus estudos. Ele é caminhoneiro desde os quinze anos, costumava viajar com seu pai, também caminhoneiro. Gosta dessa vida, apesar de ser cansativa.
Perguntei a todos os caminhoneiros que conheci se gostavam do seu trabalho. E todos responderam que sim, e se orgulhavam de conhecer o país quase por inteiro. Walter parou num posto na entrada de Córdoba. Nos despedimos e tomamos um ônibus até o centro.
Encontramos o albergue que um amigo tinha me indicado. Deixamos nossas coisas lá, saímos para comer, tomamos um banho e dormimos o bom sono dos cansados, depois de dois dias de caronas quase sem dormir. Mas valeu a pena. Percorremos mais de 1000 km gastando só com alimentação. Vida de mochileiro. Coração de viajante.
Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.
Veja o post anterior.
Veja o próximo.
Tags: américa latina, argentina, carona, viagem