Lindolf Bell e O inventário

Lindolf Bell é talvez o mais reconhecido poeta do Vale do Itajaí, lá de onde eu vim em Santa Catarina. Me espanta achar pouquíssimas de suas obras no universo online, e algumas com erros. Patético que meu acervo da adolescência tenha que servir de resgate para sua obra. Cá estou eu com uma pastinha cuja primeira página indica: “Meu poemas preferidos, poemas de minha autoria e textos da Academia de Mont Alverne” ( que era a academia de oratória do colégio em que estudei). Remonta ao ano 2000. E lá tem alguns poemas de Bell que copiei do livro do meu pai, acho que era “O código das águas”.

Aproveitei para corrigir o Poema tipo fichário de informações, que tinha copiado de alguma página online e estava errado. Meu acervinho pessoal tendo alguma utilidade… Fica a dica pra Fundação Cultural de Blumenau ou até pra Secretaria de Estado da Cultura…

De qualquer maneira, vale a leitura.

 

O inventário

Os carros negros param ao longo do muro.
E os homens com dragonas e medalhas douradas descem lentos.
No pátio a Festa das Máscaras vai alta!
Um dos senhores com a bengala de marfim castiga o ar,
em vista da total ausência de Homens e Animais.
A Rússia traz um tanque de ideias pela coleira
e os Estados Unidos, vários países na corda bamba.
Os homens com dragonas e medalhas douradas falam baixo,
com medo de despertar a Humanidade.
Vários pagens trazem sobre bandejas
a cabeça dos países arrasados.
Outros carregam a cauda das casacas
e a viseira da inteligência dos enormes homens frios.
Os homens com dragonas e medalhas douradas
não tiveram vaias nem palmas
por causa da mudez do mundo.
Janelas fechadas, sim, e uma bandeira de silêncio também
onde em grandes letras se vislumbrava:
PAZ E LIBERDADE
O bastão anuncia três vezes: De Gaulle chega
e com dez adolescentes dança sobre a Vitória.
A América Sul mastiga grama seca
e sua crina está ensanguentada.
Nem mesmo o Lírio dos Andes nas tranças
salva esta pálida máscara da morte.
No meio do pátio existem duas mesas.
Uma com a Europa passada a limpo: Torre de Agonia.
Na outra, as Américas e suas castas.
A Estátua da Liberdade canta uma antiga canção
de ninar escravos sobre o pico das Bandeiras,
sem bandeira nenhuma.

Tambores feitos da pele de gatos;
tiros das trincheiras do Vietnã;
gritos de socorro da Sibéria;
lamentos antigos de comunistas e cristãos;
sonhos em pedaços como ovos caídos do ninho.

Os carros negros param ao longo do muro.
A música do pátio levanta-se sobre as fábricas
e sobre as cabeças dos deuses
e sobre as antenas erguidas nos montes
e sobre as estrelas feitas de luz e metal.
Os homens com dragonas e medalhas douradas
prendem a verdade num envelope lacrado
e assinam um novo acordo: na lua nova,
oh! na lua nova, quando as urzes e os trigos
nascerem das chuvas da Primavera,
crivaremos de bala os Grandes Sonhos da Juventude,
as páginas brancas da Esperança,
os ideais amontoados no Barco da Infância,
os vitrais onde, para sempre, se inscreveu o futuro.

E à sombra das bombas em flor: Trago cocos da Bahia
uma máquina que fala. Igarapés e castanhas,
uma máquina que anda. Um samba e um canto,
uma máquina que ama. Uma sede e um nordeste,
uma máquina que dança. Uma queixa e um fruto,
uma máquina que mata negros. Uma palmeira e um sabiá,
uma máquina por um reino. Um balão e um papagaio,
uma máquina lunar. Um futuro, uma praça,
uma máquina, uma máquina. Um povo, um povo,
uma máquina, uma máquina. Um povo, um povo,
um povo de máquinas. Um povo do povo,
um povo sem povo.

Os carros param ao longo do muro
como frutos metálicos de uma estação de horror.
Então é isto a Humanidade?
A cinza e o sudário sobre o rosto?
Então é esta a Paz?
A que nos encosta a um muro com um fuzil?
Que indaga do lugar de nascimento,
de Caraíbas nunca vistas, de Guatemalas ancestrais
e de navios afundados e memórias ancoradas?

No pátio a festa vai alta, a lua vai alta.
De passagem, um minuto de silêncio,
pelos mortos de amanhã, o Soldado Desconhecido,
as árvores cortadas, as consciências liquidadas a jato
e a música dos olhos vazados de pássaros e judeus.

Os carros negros param ao longo do muro
e nas pontas das mesas
os homens com medalhas e dragonas douradas
exibem as duas chaves falsas do Universo:
CAPITALISMO E COMUNISMO

Onde estão as portas?
E a pergunta desaba sobre os homens e fica sem resposta.
E a Festa do Pátio prossegue
em legítima defesa de todas as mortes
de todos os rios de sangue de Granada
de todas as praças liquidadas da Hungria
de todos os crimes fáceis de S. Domingos
de todos os países de ferro e fome explorados sem defesa.

ANACRÔNICAS GLÓRIAS!
ANACRÔNICA PAZ!
ANACRÔNICA DESIGUALDADE DOS POVOS!

 

Lindolf Bell

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