Viajeros – Aquela tal malandragem não existe mais?

Às vezes queria ter nascido em outras épocas. Poder explorar o mundo como o alucinado Jack Kerouac, desbravando Méxicos, Marrocos, Europas e sinistros rincões do Tio Sam na sua vagabundagem evolutiva. Aldous Huxley, Humboldt, Mário de Andrade, eles sim sabiam o que era o choque de culturas, o inesperado, novo, rico, e acima de tudo, a troca. Agora não. Os postos de fronteira decidem quem entra e quem fica, determinam um prazo limite de permanência no país. Isso sem falar da Interpol. Ninguém merece. Um organismo internacional que perde seu tempo na caça de inofensivos artesãos que só querem ter o direito de trabalhar em paz enquanto as quadrilhas de tráfico internacional e os criminosos de colarinho branco continuam alvoroçando o mundo.

O turismo deturpou as culturas, transformando-as em produtos embalados segundo as tendências do mercado. Os dólares são gastos pelos turistas, disputados pelos nativos miseráveis e a troca já era. O nativo não tem nada para falar com o turista playboy e o turista se sente explorado pelo exótico nativo. Dois mundos se cruzam, porém não interagem para além do comércio. Business.

Aí surgem os rótulos: boliviano preguiçoso, argentino petulante, peruano trambiqueiro, brasileiro folgado. Ninguém se entende e nem quer se entender. As coisas são simples e resumíveis a rótulos.

É, às vezes parece que o tempo do mochileiro livre acabou. Os caminhoneiros não podem mais dar carona, seus caminhões são controlados por satélite e cada porta aberta é monitorada. O medo se infiltra em cada ângulo das situações sociais. Terrorismo, narcotráfico, homicídios, assaltos – e o viajante no meio desse cenário caótico recebendo olhares desconfiados.

Mas ainda é possível. Tem que ter jogo de cintura, mas a experiência ensina. Há muito o que conhecer, apesar de a globalização impor seus padrões em nome de um pretenso desenvolvimento. O sol ainda nasce no Atlântico e se põe no Pacífico. Os argentinos tomam mate e os bolivianos mastigam coca. Ainda há resquícios de originalidade, e a dinâmica global se adapta de diferentes formas aos contextos locais. Nem precisa procurar muito – é uma questão de abrir (ou fechar) os olhos.

Jack Kerouac, no final da década de 50, nos anos pós-guerra da radiante aurora da sociedade do bem-estar, viu o final do vagabundo – o verdadeiro vagabundo, não o vadio. “Malandro é malandro e mané é mané”, já dizia Bezerra da Silva. Chico Buarque eternizou a decadência da malandragem. Já não existe mais. A polícia, o padre, a família, o mercado de trabalho, tudo isso matou o malandro de Chico e o vagabundo de Kerouac, que subvertiam os valores predominantes.

É cada vez mais difícil acordar da Matrix – os programas se refinam mais e mais. O vagabundo vê que nada disso faz sentido. “Eu queria ser burro, não sofria tanto”, lamentou Raul Seixas. Mas se fosse burro não seria genial. A mudança dói. Mas a dor é inerente à metamorfose, e acaba virando serenidade, apontando novos caminhos. O covarde dá meia volta. O viajante vai.

 

Esse é o último texto do livro que apresentei como TCC em 2007: Viajeros – nos fluxos da América do Sul. Revisei o livro nesse blog por meio de posts. Essa vida de estrada é muito viva. Dá saudade.

Veja o post anterior.

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One Response to “Viajeros – Aquela tal malandragem não existe mais?”

  1. […] Baianos, Mano Chao, Sidarta, Hesse, Kerouac, Thoreau, Che Guevara. Dervixes. Malucos de BR. Malandragem, vagabundagem evolutiva. A arte de se perder pra se encontrar, de romper com todos os papeis, de tudo o que se espera […]

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