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Crime e castigo, um romance da condição humana

sexta-feira, março 20th, 2009

Retrato de Fiódor M. Dostoiévski.

Retrato de Fiódor M. Dostoiévski.

Alguns livros destacam-se por tratarem de temas universais, tornando-se eternos. Crime e castigo, de Fiódor M. Dostoiévski, é um desses clássicos da literatura mundial. Ler essa obra é embarcar numa jornada na Rússia quando o capitalismo se estabelecia, sob a tutela aristocrática, e sementes socialistas já começavam a brotar. Talvez por isso, o sujeito da obra de Dostoiévski viva questões existenciais e morais tão profundas. Raskólhnikov, protagonista de Crime e castigo, estudante sem nobreza nem capital, se vê sem perspectivas de futuro e sofre em pensar em sua mãe e sua irmã, pelas quais nada pode fazer. Seu isolamento social permite que desenvolva teorias acerca da humanidade, chegando inclusive à obsessão. Trancado em seu sótão deplorável, alimenta as angústias que vive socialmente. Abaixo transcrevo um trecho do livro que, para mim, é crucial, sintetizando o conflito moral da obra, no qual Raskólhnikov discute um artigo de sua autoria.

– Os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas, mas os traços diferenciais de ambas as categorias são bem nítidos: a primeira categoria, ou seja, a matéria, falando em termos gerais, é formada por indivíduos conservadores por natureza, disciplinados, que vivem na obediência e gostam de viver nela. A meu ver têm a obrigação de ser obedientes, por ser esse o seu destino e não ter, de maneira nenhuma, para eles, nada de humilhante. A segunda categoria é composta por aqueles que infringem as leis, os destrutores e os propensos a sê-lo, a julgar pelas suas faculdades. Os crimes destes são, naturalmente, relativos e muito diferentes; na sua maior parte exigem, segundo os mais diversos métodos, a destruição do presente em nome de qualquer coisa de melhor. Mas se necessitarem, para bem da sua idéia, de saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do sangue, então eles, no seu íntimo, na sua consciência, podem, em minha opinião, conceder a si próprios a autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente à idéia e ao seu conteúdo, repare bem. É só neste sentido que eu falo no meu artigo do direito ao crime. (Lembre-se, o senhor, que partimos de uma questão jurídica.) Embora, no fim de contas, não haja razão nenhuma para se ficar demasiado assustado; quase nunca a massa lhes reconhece esse direito, e até os castiga e os manda enforcar (mais ou menos); e assim, com absoluta justiça, cumpre o seu destino conservador, o que não é obstáculo para que, nas gerações seguintes, essa mesma massa erga os castigos sobre pedestais e se incline diante deles (mais ou menos). A primeira categoria é sempre a verdadeira dominadora: a segunda é… a futura dominadora. Os primeiros conservam o mundo e multiplicam-no matematicamente; os segundos movem-no e conduzem-no para a sua finalidade. Tanto uns como outros têm perfeito direito de existir. Em resumo: para mim, todos têm o mesmo direito, e… vive la guerre éternelle!…

De fato, Raskólhnikov comete um crime: assassina uma senhora usurária que penhorava objetos e, por fatalidade, mata também a irmã da velha, que aparece inadvertidamente na cena do crime. Ele rouba alguns de seus objetos de valor, mas não usufrui deles – esconde-os e abandona-os. Isso porque o assassinato não teve motivo financeiro, mas ideológico. Na minha leitura, sua teoria encara um evento que é social sob uma ótica natural, determinista. Ou seja, encaixa fenômenos sociais em leis da natureza. Sua visão é bastante oligarca, fazendo crer que existe uma enorme massa naturalmente inerte que deve ser guiada por homens à frente de seu tempo.
A teoria se justifica pela história, os mártires são seus trunfos. Porém os mártires, em geral, têm inicialmente o apoio da população à sua volta, destacando-se por sua liderança. Não é uma massa conservadora que os degola: são os detentores do poder, os fazedores das normas vigentes, que não permitem ameaças revolucionárias. Assim foi com Jesus Cristo e o Império Romano, Tiradentes e a Coroa, Che Guevara e as ditaduras militares sob a Doutrina Monroe, entre tantos outros casos.
Existe sim, historicamente, uma força conservadora e outra radical, é a tal da dialética, e há lideranças dos dois lados: os que comandam a estrutura vigente e aqueles que enxergam suas limitações e desejam transcendê-la. Entre esses dois pólos, uma enorme população que sobrevive sem considerar fatores dessa ordem transita, apoiando aqueles que os fazem acreditar que estão em defesa de seus interesses. A luta revolucionária hoje busca justamente que todos sejam atores sociais, que vejam com seus próprios olhos a realidade que os cerca e possam construir ferramentas de interação. Desse conceito surgem os termos “emancipação” e “autodeterminação”. Raskólhnikov não acreditava nisso. Sob sua visão, esses fatores foram determinados naturalmente e cabe a cada um aceitar seu destino.
Mas aí surge o conflito: ele não consegue viver em paz com seu crime. Seus nervos, em permanente estado de ebulição, o traem, e uma idéia cinzenta o assombra cada vez mais. Em sua teoria, ele previu que alguns seres conservadores poderiam, por alguma ironia do destino, acreditarem-se revolucionários.

– Apesar da sua propensão inata para a obediência, por alguma travessura da natureza, do que nem uma vaca está livre, muitos deles imaginam-se seres avançados, destrutores, e correm atrás da palavra nova, e isso com absoluta sinceridade. Na realidade, e com muita freqüência, não sabem distinguir os novos e até os olham com desdém, como a pessoas atrasadas e que pensam baixamente. Mas, a meu ver, isso não é motivo sério para inquietação, e o senhor, verdadeiramente, não deve sentir o menor desassossego, pois esses indivíduos nunca vão longe. Sem dúvida que poderiam ser castigados uma vez, pela sua presunção, a fim de recordar-lhes qual é o seu lugar; mas, para isso, nem sequer é preciso incomodar o verdugo: são eles mesmos que se flagelam, porque possuem uma elevada moralidade; alguns prestam-se mutuamente esse serviço e outros açoitam-se por suas próprias mãos… além disso, impõem-se diversas penitências públicas… o que é belo e edificante.

Imaginem seu desespero quando ele percebe que é um desses seres inferiores que se confundiram, crendo-se avançados! Traído por sua própria teoria, tendo que admitir seu fracasso e ocultar seu crime, entre intrigas familiares, a loucura o assola.
Dostoiévski é capaz de refletir a existência humana ao mesmo tempo em que recheia seu romance de cenas fantásticas, personagens ricos e diálogos impressionantes. Com essa combinação genial, eternizou suas obras. Um deleite para os amantes da literatura e àqueles que investigam a complexidade da alma humana.

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Aos contemplativos

terça-feira, abril 22nd, 2008

Há um notável quadro do pintor Kramskói, intitulado O Contemplativo. Uma floresta no inverno; sobre a estrada vê-se um mujique, vestido com um cafetã rasgado e com sapatos de tília. Ali está numa solidão profunda e parece refletir, mas não pensa, contempla alguma coisa. Se se desse nele um encontrão, estremeceria e olharia como quem desperta, mas sem compreender. Na verdade, voltaria logo a si, mas se lhe perguntassem em que pensava, certamente não se lembraria de nada, mas, em compensação, decerto guardaria para si a impressão sob cujo império se achava durante sua contemplação. Essas impressões são-lhe caras e se acumulam nele, imperceptivelmente, sem que o perceba; com que fim, ele o ignora. Um dia, talvez, depois de havê-las armazenado durante anos, deixará tudo e partirá para Jerusalém, a fim de tratar de sua salvação. Ou então deitará fogo à sua aldeia natal, talvez faça mesmo as duas coisas sucessivamente.
Trecho de Os irmãos Karamázovi, Fiódor M. Dostoiévski.

Contemplar, meditar, entrar em êxtase com o universo; não seriam acaso o mesmo? Certamente, das contemplações armazenadas, podem-se derivar os mais loucos produtos: a queima da aldeia natal, uma peregrinação santa ou um livro magistral. Não seria Dostoiévski um desses contemplativos?
Literatos, fotógrafos, compositores e intérpretes são alguns daqueles que manifestam o produto de suas contemplações. Com o tempo elas vão se concretizando, como egrégoras que sob o império da criatividade tomam formas inusitadas.
Contemplar é ver através dos olhos de Deus.

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