Saímos da Bolívia no último dia permitido pelo nosso visto. Depois de três meses em terras bolivianas, entraríamos num país de cultura similar, porém atualmente numa direção política oposta: enquanto a Bolívia bate de frente com o sistema neoliberal em busca de um alternativa, o Peru se esforça por cair nas graças do sedutor desenvolvimento capitalista. Miséria e riqueza mais evidentes na meca do turismo sul-americano.
A cidade branca
Úrsula no terraço de sua casa em Arequipa. Ao fundo, o vulcão Misti.
De Copacabana, ao norte da Bolívia, atravessamos a fronteira rumo a Arequipa, conhecida como “a cidade branca”. Ficamos na casa de Úrsula, que conheci no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais (EIV – MG) em janeiro de 2006. Uns dias depois de nós chegaram Luciana, amiga chilena que visitamos em Valparaíso e que também esteve no EIV, suas duas amigas conterrâneas e o brasileiro Lucas, outro participante do estágio.
Lotamos a casa da família de Úrsula, que deu uma aula de boa vontade. Sua mãe e ela, que estudava gastronomia, preparavam pratos típicos. Seu pai contava das tradições incaicas e até comprou dois porongos de cañazo, a cachaça produzida no Peru, para os brasileiros que chegariam em sua casa. Eles nos levaram para conhecer o mar peruano, em Mollendo. Foi divertido e, principalmente, diferente – uma praia rodeada por deserto.
A chilena Luciana e o mineiro Lucas: nos encontrando pelo caminho.
Já o centro de Arequipa é de fato todo branco, e margeado por três vulcões, com seus cumes nevados brilhando ao sol. A catedral imponente, com um diabo impressionante talhado no púlpito, derrama a sombra de suas torres na praça central tipicamente espanhola, rodeada por arcos e tomada por turistas, vendedores e pedintes.
Passamos cerca de duas semanas em Arequipa. As vendas de artesanato iam bem, mas como não pagávamos alojamento, aproveitamos e tiramos uns dias para produzir tranquilos. Durante esse período, as meninas chilenas e o mineiro foram conhecer o canion do Vale do Colca. Na volta, nos disseram que valia a pena ir lá. Resolvemos seguir a dica.
Local de venda de artesanto no centro de Arequipa: viajantes de diversos países em convivência. Foto de Thiago Martins.
Um vale de conto de fadas
O Vale do Colca foi reconhecido como canion não faz muito tempo – a exploração turística é recente. Assim que colocamos o pé em Chivay, uma das cidadezinhas do vale, apareceu um cara anunciando hotel – “dez soles”, ofereceu ele (sim, a moeda peruana é o Sol). “Por cabeça?”, perguntou Thiago, achando caro. “Não, os dois”, respondeu o peruano. Negócio fechado.
Ele nos levou ao local; seu filho abriu o portão. O negociante era o dono e sua família morava lá mesmo. O jardim estava bem cuidado, com flores; o quarto bem ajeitado, com banheiro privado e ducha a gás, bem quentinha – o melhor banho desde o início da viagem. Tudo isso pela menor diária que chegamos a pagar no Peru.
As senhoras de lá usam umas roupas lindas, todas bordadas – um artesanato típico da região. O mercado local não tinha aquela confusão da maioria dos mercados que conheci no Peru e na Bolívia, e a comida era muito boa e barata. E sim, opções sem carne eram possíveis! Mas o melhor foi a paisagem: céu estupidamente azul, sol, montanhas, friozinho – o retrato da tranquilidade.
No hotel, conhecemos um psicólogo belga, de cabelo já todo branquinho, que vive há longa data na Holanda. Desde muito tempo ele trabalha por uns cinco anos e junta uma grana. Depois, vende tudo, inclusive o consultório, e sai de viagem. Ele estava com sua filha e o namorado dela, ambos de 18 ou 19 anos. Acompanhamos eles até Madrigal, um povoadinho a três horas de kombi de Chivay. Tanto na Bolívia quanto no Peru os ônibus são usados para transporte interurbano: dentro das cidades e pelos caminhos do interior, a kombi impera. O bom é que costuma ser barato e o dinheiro não vai para uma grande empresa de transportes – fica com os motoristas-proprietários. Mas sempre tem um lado ruim: como não há fiscalização, e até nem sei se existe uma regulamentação, as kombis costumam circular completamente lotadas. E dessa vez também foi assim.
Saímos antes do sol nascer, e mesmo assim não havia lugar para todos sentarem – nem para as milhares de bagagens que as pessoas sempre levam de um lado para o outro. Sacas de alimentos, animais, tapetes – vi de tudo ser carregado nas viagens pelos Andes, e em grande quantidade. Dessa vez, tinha até gente “semi-em-pé”, pois a altura da kombi não comporta uma pessoa em pé. Mas o impressionante é que o pessoal da região ia bem, conversando, melhor que nós, gringos almofadinhas sentados e enjoados pelo sacolejo – os gringuitos, como eles nos chamaram.
Era sábado, primeiro dia do carnaval no vilarejo. Nos indicaram uma caminhada para chegar à entrada do canion, onde se pode ver os condores planando com exclusividade. Andamos pela estradinha, eu, Thiago e os europeus, cruzando os pequenos sítios; ao longe se viam os montes nevados.
O Vale do Colca é muito frio e alto, mas o sol é bastante forte. O resultado dessa equação é: durante o dia, frio na sombra e calor ao sol; à noite, uma friaca de fazer tremer os ossos. Caminhamos mais de uma hora e chegamos ao início da subida que leva à tal entrada do canion: um zigue-zague assustador desenhado na montanha. Não tive dúvida. “Thiago, sinto muito, não tô afim de subir isso aí, tô pensando em curtir o dia, a festa, vou ver o canion depois do mesmo jeito, então se você quiser ir, boa sorte”. Já tínhamos planejado ir ao cruce del condor, a “encruzilhada do condor”, onde se tem uma bela vista e os turistas vão para ver o pássaro – ou seja, um bom lugar para vender e apreciar a paisagem.
Thiago seguiu subida, eu me dispersei dos outros e sentei na beirada de um riozinho, onde parecia que as montanhas faziam um portal, abaixo de uns buracos altos na rocha que depois fui descobrir serem antigas catacumbas. Voltei andando sozinha por esse caminho lindo, parando para descansar entre as subidas e descidas. De volta ao centrinho, até tentei vender alguma coisa, mas vi que não teria muita saída. Ouvi uma música vindo do terreno de uma casa: a festa começava ali. Havia homens vestidos de mulher e outros de mineiro, com a cara pintada de carvão (los negritos, o povo dizia), além de muita chicha, uma bebida alcoolica fermentada caseira que achei simplesmente horrível, com um tremendo gosto de azedo.
Na festa encontrei Thiago, o senhor belga (que também havia subido o monte) e os dois jovens europeus. Os moradores nos ofereceram comida e chicha, nos tiraram para dançar, pintaram a holandesa de carvão e não queriam que fôssemos embora. Até nos ofereceram um cantinho em sua casa. “Eu quero que vocês se sintam bem, fico feliz que estejam aqui, porque todos somos irmãos. Meu filho foi para o Chile e lá o tratam muito mal, e isso está errado. Não importa de onde viemos, somos todos iguais”, disse a anfitriã, já meio embriagada na alegria da festa. Há uma grande rivalidade entre chilenos e peruanos, que remonta à Guerra do Pacífico, vencida pelo Chile.
Bolívia e Peru versus Chile e Inglaterra
A Guerra do Pacífico ocorreu de 1879 a 1883, envolvendo Chile, Peru e Bolívia. O motivo foi o guano, espécie de esterco de ave acumulado ao longo dos séculos no litoral peruano, e, principalmente, o salitre, substância semelhante ao sal porém com maior teor de sódio. São ambos fertilizantes, que se encontravam em território peruano e boliviano. Naquela época ainda não existiam fertilizantes químicos. Por isso esses produtos eram bastante cobiçados na Europa, onde o solo estava exaurido e a população crescia vertiginosamente.
A exportação do salitre era um negócio peruano e, principalmente, chileno. Quando o governo boliviano resolveu cobrar impostos pelo produto, o Chile, apoiado pela Inglaterra (para quem os chilenos repassavam a mercadoria), invadiu a Bolívia, dominando o território de Antofagasta, onde se encontrava grande quantidade da substância. Em seguida, o Peru teve as regiões de Arica e Iquique abocanhadas pelo Estado chileno. Essa guerra deixou profundas marcas: para os chilenos, ficou o orgulho da vitória e a sensação de superioridade perante seus vizinhos derrotados; já os peruanos odeiam os chilenos, afinal seu país terminou a guerra dilacerado; e a Bolívia até hoje exige de volta sua saída para o mar, perdida na guerra.
Condores e flashes
Apesar dos convites para ficar em Madrigal, voltamos a Chivay. Devíamos partir em breve: nosso dinheiro estava acabando, as vendas não iam bem e não havia caixa automático para sacar (a essa altura já havia recuperado o cartão – minha mãe enviou um novo via correio para Arequipa). Tivemos sorte de pegar a kombi vazia.
No dia seguinte fomos ao cruce del condor. Havia mamitas vendendo roupas de lã de alpaca – um animal semelhante à lhama, porém mais peludo. O lugar era realmente muito bonito, mas cheio de turistas. Quando a estrela da festa, o condor, apareceu, houve o maior rebuliço: turistas correndo com máquina fotográfica na mão para registrar a imagem da majestosa ave. Eu, me sentindo meio boba no meio daquele súbito alvoroço, segui a leva de turistas para ver o condor – afinal, nunca tinha visto um. O passáro símbolo da liberdade distraidamente deu o seu espetáculo.
Vendemos somente o suficiente para pagar o transporte de ida e volta ao cruzamento. Tínhamos a grana certa para a passagem até Arequipa; faltava acertar a última diária do hotel. Explicamos a situação para a mulher do negociante, também dona do hotel, deixamos uns brinquinhos e uma pulseira e ficou tudo bem.
Voltamos para Arequipa, parada obrigatória entre o Vale do Colca e Cusco. Essa noite me senti mal e tive febre. Mal sabia eu que era só o começo.
Cusco para quem pode pagar
Um sujeiro vestido de inca falando ao celular – ganha a vida posando para fotos. Uma mamita tenta vender a todo custo os cintos que produz. Um anunciante de rua me aborda – “TATUAGENS, PIERCINGS, marihuana, cocaína, ópio, heroína…”, alardeia, diminuindo a voz à medida que vai falando. Turistas bêbados com os “free drinks fisga cliente” a cada esquina. Mendigos por todos os lados. Milhares de taxis buzinando o tempo todo. Cusco, o ponto alto do turismo na América do Sul, a cidade plastificada onde igrejas foram construídas sobre templos incaicos.
Foram vinte dias de fraqueza, dor de barriga, tontura, vômito e diarréia. O motivo é um mistério: fui ao posto de saúde local, fiz exames, mas nada foi diagnosticado. Quando saía para tomar um ar, voltava ainda pior. A falsidade de Cusco me sufocou. Tudo ao seu alcance, se você puder pagar.
Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.
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