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Viajeros – Percepções culturais

segunda-feira, dezembro 20th, 2010

 

O que é cultura? Essa pergunta sempre surge quando queremos organizar as percepções culturais em nossos arquivos cerebrais. Mas talvez o inconsciente saiba a resposta para esta pergunta, ou ainda, nem se preocupe com ela. Ele simplesmente sente, vive, assimila ou não, faz associações com nossas experiências anteriores, nossa carga emocional, de uma maneira que vai além de nossas concepções racionais. Mas somos viciados nas palavras, nos conceitos. E através deles nos comunicamos. Por isso, me propus a transmitir minhas recentes sensações culturais em palavras, por mais limitadas que estas sejam.

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Viajeros – Vilarejo

domingo, agosto 22nd, 2010

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Sítio Arco-íris. O por do sol daqui é lindo – nuvens de algodão doce de Rondônia amareladas e rosadas. O fiel súdito vento anuncia a chuva, dando uma noção prévia do seu poder, trazendo consigo nuvens densas e promessas de vida. Ela, a Majestade, vem pelo lago – do outro lado as árvores já estão envoltas numa espécie de névoa aquática. Quando todos estão preparados para recebê-la, a chuva chega – momento de paz e quietude.

Porto Velho estava um saco. A paradoxal cidade amazônica onde não há árvores. Muito trabalho, pouco dinheiro. No auge do tédio, escrevi um poema-desabafo:

O tédio me envolve
com paredes de azulejos brancos,
conversa de novela vindo da sala de um hotel barato,
vestígio de goteira,
cheiro de mofo.

O tédio amarra meus pés e mãos na cama,
hipnotiza minha cabeça para achar tudo um saco.

Porto velho, novo, morto e eterno.
Eterno tédio que se faz vapor,
calor, gotas de suor.

Calypso infernal amolece minhas pernas,
aborta a sede do novo,
me tranca num quarto com as mãos nos ouvidos.

O tédio me tece um ninho, me faz cafuné,
minha musa, meu carrasco,
meu bicho de pé.

Até que um dia, enquanto trabalhávamos, um menino veio falar conosco. O nome dele era Alan, disse que vivia num sítio e que seríamos muito bem-vindos lá. A história é a seguinte: Jackson, um cara que já foi artesão-viajante e percorreu muita estrada, sempre buscou algo, estudou várias religiões e linhas esotéricas, até que decidiu morar num sítio, primeiramente sozinho. internet3Depois de uns anos sua mulher, Cláudia, e seus filhos, que viviam na cidade, também foram para lá. Eles se sustentam com a cerâmica e os tapetes que produzem, e recebem quem quer que seja, é só contribuir com comida, colaborar nos afazeres e respeitar a harmonia do lugar. Também vivem lá o acreano Leandro, a argentina Veronica e Valéria, irmã de Cláudia. Há quatro ou cinco dias Valéria deu à luz a uma criança linda, o Ba’aruda, que trouxe mais alegria e paz ao sítio.

Nasce Ba’aruda

O Santo Daime

O pessoal do sítio freqüenta uma igreja do Santo Daime. Trata-se de uma corrente cristã que utiliza em seus rituais uma bebida elaborada a partir de plantas que altera a consciência e que, segundo Jackson, desbloqueia um mecanismo de censura do nosso cérebro. Essa bebida é conhecida no Peru e na Bolívia como ayahuasca, parte de uma tradição indígena, usada até hoje em rituais de auto-conhecimento e purificação física e espiritual. A bebida foi legalizada no Brasil depois de estudos comprovando que ela não oferece riscos à saúde.

“Sabe aquela sujeirinha debaixo do tapete, que só você sabe que tá lá? Vem tudo à tona”, me disse um maluco brasileiro no Peru sobre a experiência com o ayahuasca. Jackson e Alan dizem que o Daime aponta um caminho, faz compreender os processos que ocorrem na vida e leva além desse mundo físico espacial-temporal que conhecemos.

Ao contrário do que algumas pessoas podem pensar, a igreja do Santo Daime é bem careta – eles usam farda, uma roupa cerimonial que mais parece roupa social, e os homens têm que estar com cabelo cortado e barba feita. Nas cerimônias eles cantam os hinos, que falam de Deus, do Daime, do Mestre Irineu – o fundador do Santo Daime -, entre outras coisas.

O Daime é feito do jagube, que é plantado por membros da igreja, num processo de muito cuidado desde o plantio até a preparação. Os fardados elaboram a bebida na cerimônia do feitio.

Retiro espiritual

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Valéria nos últimos dias de gravidez

Aqui no sítio encontrei sossego, pessoas tranqüilas que trilham um caminho de aperfeiçoamento e ar puro. É um lugar lindo, repleto de árvores, às margens de um lago. O único infortúnio foi o desenvolvimento de uma doença no meu pé. Uma bactéria, o estafilocócus, se instalou em feridas de picada de insetos, creio que no fétido hotel em Porto Velho. Thiago também está infectado, mas em menor proporção. Aprendi a usar a necessidade de não poder me movimentar muito a meu favor aproveitando para ler, pensar e aprender bastante.

Depois de quinze dias tentando tratar minhas feridas de forma natural, o que exigia toda uma rotina diária de cuidados, me rendi à alopatia: tomei um “pics” de benzetacil no bumbum. Agora é esperar melhorar e seguir caminho – a estrada chama.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – De volta ao Brasil

sábado, junho 26th, 2010

Feijão, farofa, água de coco. Voltar a falar e ouvir português. O jeito aberto dos brasileiros. Deixar para trás o castelhano, a riquíssima cultura andina, a deliciosa e variada culinária peruana e o desafio de estar em outro país. Mas a expectativa de conhecer um pouco do Brasil que não conheço, do qual sempre ouvi falar, do qual dizem que eu faço parte; essa exploração da própria pátria me deixou ansiosa por chegar.

Peru tropical

De Cusco partimos para Puerto Maldonado, já na floresta amazônica. Apesar de ser a capital da região, a cidade é pequena e tranquila. Muito calor, sol, frutas e sucos. As pessoas pareciam mais receptivas, quentes, assim como o clima. Ficamos na casa de César – ele nos ofereceu abrigo sem nem nos conhecer direito. Estava vendendo artesanato no centro da cidade, quando esse rapaz veio falar comigo. Disse que não tinha dinheiro e perguntou se podia só ficar olhando. À minha afirmativa, ele foi puxando assunto e, ao saber que eu era brasileira, começou a falar de futebol. Perguntei se ele sabia onde poderíamos acampar. “Não tem problema se for num lugar simples?”, ele contestou. Claro que não tinha. A casa, assim como ele, era realmente muito simples – estrutura de madeira e banheiro de fossa no quintal. Nem precisamos armar acampamento, ele nos abrigou dentro de sua casa. Ficamos lá mais ou menos uma semana.

Encontramos Kae e Gina, artesãos peruanos que já havíamos cruzado em Arequipa. No último dia em Puerto Maldonado, todos vendemos surpreendentemente bem. “Quando chega uma onda de boa sorte, outra de má está vindo”, alertou Kae. O pior é que ele estava certo.

Chegamos até a última cidade peruana antes do Brasil pedindo carona. Muita selva, estrada de terra, cheiro de mata. E insetos, muitos insetos. A única maneira de ir a Assis Brasil, município acreano na divisa com o Peru, era de táxi. Ao chegar, já pudemos perceber nitidamente a diferença: os traços indígenas já misturados com brancos e negros, pessoas mais altas, ruas pavimentadas e a cidade mais arrumadinha. Comemos num restaurante por quilo, coisa que não lembro de ter visto no Peru – arroz, feijão, farinha, macarrão e salada. Que delícia. E bem mais fácil negociar um prato sem carne em português.

Acre, deveras acre

No mesmo dia tomamos um ônibus para Rio Branco. Percebemos que do lado brasileiro a selva foi trocada pelo asfalto. Tudo devastado, transformado em pasto. No lugar de árvores, gado. E chegou a tal da onda de má sorte. Só conseguíamos dinheiro para comer e pagar o hotel. Rio Branco é bem ajeitada, muito diferente do que eu poderia imaginar, mas sem nenhum grande atrativo. Na mata o interessante não é a cidade – é a mata.

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Esperamos carona três dias num posto na saída de Rio Branco

Conhecemos os malucos e micróbios. Nos países hermanos que percorremos, quem trabalha com artesanato é artesão; quando é um viajante, provoca interesse nas pessoas com sua aura lúdica e suas histórias longínquas. No Brasil não existe artesão: é maluco, micróbio ou hippie, e geralmente desperta cautela ou desprezo. A coisa aqui é bem mais marginalizada.

O micróbio vai com a roupa do corpo aonde for, dorme em qualquer lugar, fala o que quer na hora que quer. “Micróbio não tem medo de nada”, canta Ventania com sua voz estragada. Até agora não tivemos problema com ninguém, a convivência tem sido boa. Mas acabamos nos distanciando, trabalhando mais isolados, buscando a tranquilidade.

Decidimos ir para Porto Velho. Encontramos Kae novamente em Rio Branco, ele estava sozinho e decidiu ir para a estrada pedir carona com a gente. Dormimos duas noites num posto na saída da cidade – nenhum caminhoneiro queria nos levar. Conseguimos carona até um povoado uns quilômetros mais para a frente. Tivemos que dormir lá, numa escola abandonada. Nossa janta: arroz com cebola e molho de tomate cozidos na latinha com álcool. Era tudo que tínhamos. No dia seguinte decidimos nos separar: carona em três seria difícil, ainda mais que os motoristas dirigiam um olhar bastante desconfiado ao peruano. Engraçado que no país mais violento da região os estrangeiros que carregam a fama de ladrão.

Consegui convencer um caminhoneiro a levá-lo, apesar de que iria apenas uns quilômetros mais adiante. Acho que o azar estava com ele – eu e Thiago conseguimos uma carona de cerca de 200 km logo depois. Descemos em plena estrada, prontos para mais uma maratona de espera – mas a sorte parecia voltar: o primeiro carro que passou parou ao nosso sinal e nos levou até Porto Velho.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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