O espetáculo “Encanto das Três Raças”, resultado do trabalho cultural desenvolvido na comunidade quilombola Paiol de Telha, é exemplo de como a arte pode contribuir para emancipar povos e construir identidades.
Camiseta do Kundun Balê - tranças e guias.
Sexta-feira, 19 de junho, 06h30 da manhã. Atrás da catedral da Praça Tiradentes, sentada em cima da minha mochila, comia um salgado que comprei numa lanchonete chinesa, um dos poucos estabelecimentos abertos a essas horas – todos chineses. Eu havia recebido um convite para assistir à estréia do Encanto das três raças e passar o fim de semana no Paiol de Telha, em Guarapuava.
Lendo o email-convite, enviado para a lista de associados do Soylocoporti, me perguntei: “mas será que eu entro nessa história que nem sei qual é?”. Nessas horas sempre me lembro que várias vezes me fiz essa pergunta, geralmente cedi e nunca me arrependi, pelo contrário, agradeci à vida por me ter dado coragem de vencer o medo e ter ousado ver o novo. E lá estava eu, sozinha, antes do dia nascer, esperando um ônibus de desconhecidos para viver um pouco mais da cultura do meu país, por tanto tempo esquecida, abandonada, e pior, discriminada e até criminalizada.
Mandorová, Assema e Kundun Balê se unem para formar o espetáculo.
Foi então que surgiu um homem que perguntou se eu era a menina que iria com eles. Era Marco Boeing, de quem o Amarelo, do Soylocoporti, havia recebido o convite. Entrei no ônibus, já ocupado em parte por crianças e adultos, que desde o início me receberam muito bem. Marco, dirigente da Assema – Associação Espiritualista Mensageiros de Aruanda, me explicou que havia conhecido Orlando Silva, diretor do espetáculo, e integrantes do Kundun Balê numa comemoração dos cem anos da umbanda realizado pela associação em Curitiba. Orlando estudou com os jovens e crianças da comunidade diversas religiões, e a Assema auxiliou na introdução da umbanda, uma religião afro-brasileira formada do sincretismo religioso entre os três povos que, majoritariamente, formam o Brasil: europeu, africano e indígena.
O poder da cultura e da arte
Sincretismo cultural.
Estudos espirituais, culturais, dança e música. Esses são os pilares do trabalho desenvolvido pelo educador e percussionista Orlando Silva junto às crianças e jovens da comunidade quilombola. Trabalho esse que vem colaborando para que os jovens conheçam e desenvolvam suas origens, que tenham consciência de seus direitos e saibam disputá-los, levando para todos a força e a riqueza de sua cultura.
A meu ver, a iniciativa traduz o que os estudos culturais latino-americanos apontam. Néstor García Canclini, em A socialização da arte – teoria e prática na América Latina, encara a arte não meramente como um objeto de absorção lúdica, mas enxerga sua capacidade de intervenção na realidade, forjando identidades e explorando visões múltiplas, aliadas inevitavelmente ao contexto histórico, social e cultural das obras.
Segundo Canclini, “está ocorrendo, em nosso século, uma transformação tão substancial na concepção da arte, quanto a que ocorreu no Renascimento. Nessa época, passou-se da estética clássica (canônica, artesanal, intelectualista) à concepção moderna (caracterizada pela livre invenção de formas, pela “genialidade” individual dos artistas, pela autonomia das obras e sua contemplação “desinteressada”).
Mães de jovens da companhia se aliam à iniciativa.
Nas últimas décadas, a concepção moderna ou liberal é questionada pelas vanguardas artísticas e por críticas sócio-políticas: de acordo com as mudanças econômicas e sociais que procuram a democratização e o desenvolvimento da participação popular, novas tendências artísticas tratam de substituir o individualismo pela criação coletiva, vêem a obra não mais como o fruto excepcional de um gênio, mas como produto das condições materiais e culturais de cada sociedade, e pedem ao público, em lugar de uma contemplação irracional e passiva, sua participação criadora.”
O autor sugere que “talvez, uma das funções da arte seja, como disseram os surrealistas, manifestar no real o maravilhoso. Mas, pensamos também, que uma das tarefas básicas da arte latino-americana atual é descobrir no maravilhoso o real”.
Encanto das Três Raças
Chegamos à comunidade no final da manhã, almoçamos e fomos direto ao auditório onde daria-se a apresentação. A tarde foi de intensa movimentação – montagem do cenário, ajustes de som e luz, marcação de cena e a junção das coregrafias do Kundun com as da Assema, somando-se ainda o trabalho cênico do Grupo Mandorová, de Guarapuava.
Muitas trançinhas no cabelo, ensaios e correrias. Na hora do show, com a platéia lotada, a ansiedade imperava. Fez-se uma roda no camarim, momento no qual todo o árduo trabalho foi recordado pelo grupo e pediu-se a benção aos orixás.
O espetáculo iniciou com um canto que pede licença à terra para plantar nela a vida, que geralmente encerra os trabalhos de umbanda. Diversas entidades desta religião afro-brasileira foram homenageadas – não aquela homenagem distante, mas incorporada, resultado da busca pela compreensão das vibrações da natureza. A percursão enérgica ditava a sintonia do espetáculo, transmitindo ritmo aos corpos – negros, mulatos, mamelucos, brancos, indígenas, altos, magros, gordos, baixos, jovens, crianças e velhos – transcendendo padrões estéticos artificiais e valorizando a individualidade em sintonia com o coletivo.
Alegria ao final do show.
Ao final do espetáculo, o auditório, lotado devido à apresentação, emanava satisfação e emoção. No palco, a energia era transbordante, desaguando em euforia e abraços consecutivos, até que artistas e público eram uma coisa só. Uma experiência intensa, autêntica, no sentido de que não é apenas um produto cultural – é o reconhecimento da história de uma gente formada por vários povos, da mistura de nuances, da valorização daquilo que somos e escolhemos ser.
Veja mais sobre a comunidade quilombola e o espetáculo nesta matéria, publicada no blog oficial do Soylocoporti. Veja também mais fotos do show e dos ensaios.