Yerko, um chileno que conheci na Bolívia, definiu o Chile de uma maneira bem engraçada: o condado dos hobbits. Naturalmente isolados do mundo pela Cordilheira dos Andes e pelo Pacífico, os chilenos levam sua vida tranquilos, e apesar de chegarem notícias do mundo inteiro, elas parecem tão distantes…
A imagem que eu tinha do Chile era a de “país mais desenvolvido da América Latina”. Mas o termo “desenvolvimento” junto com “América Latina” sempre é uma piada – só abarca uma elite.
Passamos duas semanas no Chile – dez dias em Valparaíso e quatro rumo à Bolívia. O que escrevo aqui são interpretações pessoais e opiniões de pessoas que conheci, que para mim fizeram sentido. Não tenho pretensões de revelar verdades, para isso já existem a enciclopédia e o dicionário.
Valparaíso
Conheci Luciana em janeiro de 2006 no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais. Contei a ela dos meus planos de viagem e me convidei para ficar na sua casa no Chile. Ela, muito solícita, disse que estaria nos esperando em Valparaíso, cidade onde vive.
Casa da Luciana.
Nunca tinha ouvido falar desse lugar, apesar de ser a segunda maior cidade do Chile, o principal porto do país, sede do poder legislativo nacional e ficar a menos de duas horas de carro de Santiago.
Um porto, seguido pelo centro ao nível do mar, rodeado por quarenta e tantos morros – essa é Valparaíso. A cidade tem um sério problema com coleta de lixo, por isso é relativamente suja. Apesar de ser grande, com mais de um milhão de habitantes, são poucos os edifícios altos, o que a torna mais aconchegante, com um ar provinciano.
Valparaíso tem fama de ser violenta. Uma certa noite estávamos os três – eu, Thiago e Luciana – voltando de um bar. Luciana viu dois homens nos seguindo do outro lado da rua, justamente quando estávamos a menos de uma quadra de sua casa. Eles pararam e pegaram um pau. Seu amigo tinha sofrido uma tentativa de assalto idêntica, no mesmo lugar, pouco tempo atrás. Ele conseguiu fugir. Diante da situação demos meia volta e esperamos; quando voltamos, eles não estavam mais lá. Isso nunca tinha acontecido com a Luciana – nunca a roubaram, apesar de já terem tentado abrir sua mochila no corre-corre da rua algumas vezes. É preciso estar atento e tranqüilo – o perigo existe, mas a paranóia costuma tomar proporções desmedidas.
Perigos à parte, nossa passagem por Valparaíso foi bastante agradável. O melhor da cidade são os morros, repletos de casinhas coloridas, entrecortados por caminhos que só quem vive ali percorre sem se perder. A vista noturna é pura poesia: milhares de pontinhos de luz ondulantes até perder de vista; do outro lado, o pacífico, trazendo os ares do Oriente. Não é à toa que Pablo Neruda tinha uma casa ali.
Para inglês ver
Colada em Valparaíso está Viña del Mar, onde vivem as pessoas mais endinheiradas do Chile. Tudo dentro do moldes turísticos: avenidas margeadas por palmeiras, hotéis de luxo, cassinos, restaurantes e tudo caro, muito caro.
Fomos dois dias a Viña para vender artesanato. Thiago ganhou uma graninha fazendo malabarismo no semáfaro e eu, como de costume, não vendi nada. Mas valeu à pena: vi o por do sol no Pacífico, a primeira vez que vi o sol se por no mar (no Brasil, vemos o sol nascer no mar, a não ser que estejamos numa ilha – questão de bússola). Voltamos a Valparaíso caminhando. Um trajeto de duas horas, que já havíamos percorrido na ida. Cheguei exausta, faminta e queimada do sol. Todos riram da brasileira que ficou vermelha no Chile.
Trauma e silêncio
Os horrores do regime militar ainda estão muito vivos na memória chilena, uma ferida não-cicatrizada. Quando a ditadura brasileira estava no auge da sua repressão, época de exílio, mortes e torturas, meus pais eram crianças tornando-se adolescentes. No Chile, a ditadura terminou em 89, sendo que a década de oitenta ainda foi testemunha do braço de ferro de Pinochet. Luciana conta que na sua infância seu pai recebia pessoas em casa que ficavam o tempo todo dentro de um quarto, não saíam nem para comer. Eram perseguidos políticos. A geração atual chilena carrega em si as marcas desse período.
Depois da ditadura veio o neoliberalismo, que ao que tudo indica se adaptou muito bem aos diversos climas chilenos, desde o desértico norte até o gélido sul. As opiniões de Yerko e Luciana convergem em um ponto: parece que a propaganda do governo funciona bem, que o povo acredita nessa imagem de desenvolvimento, que estão na melhor situação que poderiam estar, enquanto os problemas sociais são evidentes – mendigos pelas ruas, muito trabalho informal, violência e discriminação racial. Os mapuches, indígenas originários da região centro-sul chilena, são os que mais sofrem com a pretensa estabilidade, e são uns dos poucos que ousam levantar a voz.
A causa mapuche
Mapuche significa “gente da terra”. Eram realmente gente da terra, até terem seu território expropriado pela colonização espanhola e serem relegados ao nível mais baixo da escala social. Hoje eles escondem suas origens, alguns trocam de sobrenome para serem aceitos na “sociedade civilizada” e conseguirem um emprego qualquer. É o fenômeno da padronização cultural, apesar da liberdade que se atribui ao sistema.
Existe a lei do indígena no Chile, mas simplesmente não é respeitada. As políticas governamentais, além de serem as comuns “tapa-buracos”, não levam em conta as reais necessidades e os desejos dos mapuches. Um exemplo concreto: num determinado caso, derrubaram suas cabanas e construíram casas. Mas o mapuche não vive em casas, vive em cabanas. Quando foram ver, as casas construídas estavam sendo usadas como chiqueiro pelos supostos beneficiários.
O movimento mapuche acusa o governo de terrorismo de Estado por encarcerar mapuches sem evidência alguma e criminalizar o movimento social.
Pé na estrada
Após dez dias em Valparaíso, já sentíamos que era hora de partir. Queríamos chegar ao Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais na Bolívia, de 12 a 15 de outubro. É sempre bom seguir viagem, mas também é um pouco difícil – quando acabamos de nos apaixonar por um novo lugar, novas pessoas, novos costumes, já está na hora de ir.
Em nosso último fim de semana em Valparaíso, pegamos o Carnaval dos Mil Tambores. Ficamos até as cinco e meia da manhã, numa festa com muito batuque e dança. Não é só brasileiro que sabe fazer festa não.
Saída do Carnaval dos Mil Tambores. Fotos de Thiago Martins.
Tivemos um jantar de despedida na casa de Camila, irmã de Luciana. Ela, que cozinha muito bem, fez um pulmai, prato típico que leva mariscos, batata, carne de porco e frango, acompanhado de vinho branco. Mais uma vez ficamos até as cinco e meia da manhã, apesar de que nosso plano era partir no dia seguinte cedinho. Sabe-se lá quando poderíamos rever esses novos amigos, e a noite estava tão boa…
Mas partimos. Tentamos pegar carona a tarde inteira, mas não saímos do lugar. Decidimos gastar com ônibus, afinal nosso objetivo era chegar a tempo para o fórum. No guichê da rodoviária, expliquei que queríamos ir para a Bolívia e perguntei para onde deveríamos ir. Nos mandaram para San Pedro de Atacama, mas só tinha ônibus na noite seguinte. Ficamos num hotelzinho e no dia seguinte fomos rumo ao norte. Chegamos lá tarde da noite. Para nosso azar, não tinha como ir para a Bolívia por ali – demoraria muito, as estradas são muito ruins. (Nem sempre acredite nos atendedores de guichê de rodoviária.). Era melhor irmos para Calama, pertinho dali, onde deveríamos pegar um ônibus para Arica e daí então entrar na Bolívia. Porém ônibus para Calama, só na manhã seguinte. Nesta nossa romaria para deixar o Chile, dormimos num albergue em San Pedro, cidade que vive do turismo, situada em pleno deserto do Atacama. Nunca vi tantas agências de viagem num lugarzinho tão pequeno. A região tem fama de ser mágica e singular, mas só tivemos tempo de dar uma voltinha.
Chegamos ao meio-dia em Calama. Comprei nossas passagens para Arica, mas teríamos que esperar até às onze da noite. Estávamos fazendo hora na rodoviária; num determinado momento, fui ao banheiro, enquanto Thiago estava lendo. Nesse instante de distração, roubaram minha mochilinha, não a grande com as roupas, mas a que levava minhas duas câmeras fotográficas (uma digital fuleira e minha Nikon FM2, adquirida especialmente para a viagem), meu cartão de crédito, os colares que estávamos vendendo, um disco do Victor Jara, definido como o “Chico Buarque chileno”, que um amigo de Valparaíso me deu, y otras cositas más. Passei o dia inteiro fazendo boletim de ocorrência, tentando entrar em contato com minha mãe para que cancelasse meu cartão, andando na rua olhando neuroticamente todas as pessoas, para ver se encontrava o desgraçado com minha mochila. Susto, raiva, impotência, desânimo – esses sentimentos que costumam aparecer nesses momentos vieram à tona, e o clima da delegacia só contribuiu para aumentá-los. O que eu não sabia é que esse incidente seria a peça inicial que, num efeito dominó, desecadearia toda uma mudança na nossa forma de viajar.
Chegamos em Arica na manhã seguinte e de lá pegamos um ônibus para a Bolívia. Um lugar completamente diferente de tudo o que já vivi. Mas essa já é outra história…
Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.
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