Trechos de O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Companhia das Letras, SP, 2005.
p. 49
[…] Mas fala-me do meu filho, que soubestes do meu filho, Nada, só aquelas mesmas palavras tuas que, num relâmpago, me pareceram conter outro sentido, como se olhando pela primeira vez um ovo tivesse a percepção do pinto que leva dentro, Deus quis o que fez e fez o que quis, é nas suas mãos que está o meu filho, eu nada posso, Em verdade, assim é, mas estes são ainda os dias em que Deus partilha com a mulher a posse da criança, Que depois, se for varão, será minha e de Deus, Ou só de Deus, Todos o somos, Nem todos, alguns há que estão divididos entre Deus e o Demónio, Como sabê-lo, Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, Quê, Que partes divina demoníaca as compõem, que espécie de humanidade transportam dentro de si, Não te compreendo, pareceu-me que estavas falando do meu filho, Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um de nós é este pouco e este muito, esta paz e esta guerra, revolta e mansidão.
p. 53
Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas duma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo.
p. 61
[…] era como se o mundo se tivesse recolhido, dobrado sobre si mesmo, pudesse o mundo ser representado por uma pessoa e diríamos que cobrira os olhos com o manto, escutando apenas o passo dos viajantes, tal como escutamos o canto de pássaros que não podemos ver, ocultos entre os ramos, eles, mas nós também, porque assim nos estarão imaginando as aves escondidas na folhagem.
p. 73
Angustiado, confuso, postado diante do túmulo da esposa mais querida de Jacob, o carpinteiro José deixou cair os braços e pender a cabeça, todo o seu corpo se alagava de um frio suor, e na estrada, agora, não passava ninguém a quem pudesse pedir um auxílio. Compreendeu que pela primeira vez na sua vida duvidava do sentido do mundo, e, como quem renuncia a uma última esperança, disse em voz alta, Vou morrer aqui. Talvez que estas palavras, noutros casos, se fôssemos capazes de pronunciá-las com toda a força e convicção, como se supõe que é a dos suicidas, estas palavras poderiam, sem dor nem lágrimas, abrir-nos, por si sós, a porta por onde se sai do mundo dos vivos, mas o geral dos homens padece de instabilidade emocional, uma alta nuvem o distrai, uma aranha tecendo a sua teia, um cão que persegue uma borboleta, uma galinha que esgaravata a terra e cacareja chamando os filhos, ou algo ainda mais simples, do próprio corpo, como sentir uma comichão na cara e coçá-la, e depois perguntar-se, Em que estava eu a pensar.
p. 75-6
Às tantas, o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer um de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas.
Já perto de Jerusalém, na íngreme ladeira, a família confundiu-se com a multidão de peregrinos e vendedores que afluíam à cidade, todos parecendo querer ser os primeiros a chegar, mas, por cautela, moderando a pressa e refreando a excitação à vista dos soldados romanos que, aos pares, vigiavam os ajuntamentos, e de um ou outro grupo da tropa mercenária de Herodes, onde podia se encontrar de tudo, recrutas judeus, evidentemente, mas também ideumeus, gálatas e trácios, germanos e gauleses, a até babilónios, com a sua fama de habilíssimos arqueiros. José, carpinteiro e homem de paz, combatente dessas pacíficas armas que se chamam plaina e enxó, maço e martelo, ou pregos e cavilhas, tem, para com estes ferrabrases, um sentimento misto, muito de temor, algo de desprezo, que não o deixa ser natural, nem mesmo na simples maneira de olhar. Por isso vai passando de olhos baixos, e é Maria, aquela que sempre está metida em casa, e nestas semanas mais resguardada ainda, oculta numa cova, onde só é visitada por uma escrava, é Maria quem tudo vai olhando em redor, curiosa, com o queixinho levantado de compreensível orgulho, pois leva ali o seu primogénito, ela, uma fraca mulher, mas muito capaz, como se vê, de dar filhos a Deus e a seu marido. Tão irradiante vai em sua felicidade que uns toscos e brutos mercenários gauleses, louros, de grandes bigodes pendentes, armas postas, mas afinal, supõe-se, de tenro coração diante deste renovo do mundo que é um jovem mãe com o seu primeiro filho, estes guerreiros endurecidos sorriram à passagem da família, com podres dentes sorriram, é certo, mas o que conta é a intenção.
p. 78
Vão entrar pela Porta da Lenha, uma das treze passagens por onde se chega ao Templo, e que, como todas as outras, tem em proclama uma lápida insculpida em grego e latim, que assim reza, A nenhum gentio é permitido cruzar este limiar e a barreira que rodeia o Templo, aquele que se atrever pagará com a vida. José e Maria entram, entra Jesus levado por eles, e a seu tempo sairão a salvo, mas as rolas, já o sabíamos, vão morrer, é o que quer a lei para reconhecer e confirmar a purificação de Maria. A um espírito voltaireano, irónico e irrespeitoso, se bem que nada original, não escaparia o ensejo de observar que, vistas as coisas, parece ser condição para a manutenção da pureza no mundo existirem nele animais inocentes, rolas ou cordeiros sejam. […] À entrada estão os levitas à espera dos que vêm oferecer sacrifícios, porém neste lugar a atmosfera será tudo menos piedosa, salvo se a piedade era então compreendida doutra maneira, não é só o cheiro e o fumo das gorduras estorricadas, do sangue fresco, do incenso, é também o vozear dos homens, os berros, os balidos, os mugidos dos animais que esperam vez no matadouro, o último e áspero grasnido duma ave que antes soubera cantar.
p. 87
Foi tão subtil a mesquinha ideia, como uma luz velocíssima que surgisse e desaparecesse sem deixar memória imperativa duma imagem definida, que José nem vergonha chegou a sentir, esse sentimento que é, quantas vezes, porém não as suficientes, nosso mais eficaz anjo-da-guarda.
p. 97
Como vindo da garganta de uma ave invisível, um assobio passou no ar, também poderia ter sido um sinal de pastor, não fosse a hora ser esta, quando todos os gados estão dormindo e só os cães velam. Porém, a noite, calma e distante, alheada dos seres e das coisas, com essa suprema indiferença que imaginamos ser do universo, ou a outra, absoluta, do vazio que restar, se algo o vazio pode ser, quando estiver cumprido o último fim de tudo, a noite ignorava o sentido e a ordem razoável que parecem reger este mundo nas horas em que ainda acreditamos ter sido ele feito para receber-nos, e à nossa loucura.
p. 101
Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa de uma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor.
p. 131
Deus não perdoa os pecados que manda cometer.
p. 137
[…] dizemos, Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, Foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. […] Quis saber o comandante da força o que ia fazer aquela caterva de rústicos a Séforis, responderam-lhe, A ver o fogo, explicação que satisfez o militar, pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência o fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz de uma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido.
p. 159
[…] isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade.
p. 211
[…] Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo.
p. 223
[…] Nenhuma salvação é suficiente, qualquer condenação é definitiva.
p. 257-8
Se eu não acreditasse em ti, não teria de viver contigo as coisas terríveis que te esperam, E como podes saber tu que me esperam coisas terríveis, Não sei nada de Deus, a não ser que tão assustadoras devem ser as suas preferências como os seus desprezos, Onde foste buscar tão estranha ideia, Terias de ser mulher para saberes o que significa viver com o desprezo de Deus, e agora vais ter de ser muito mais que um homem pra viveres e morreres como seu eleito, Queres assustar-me, Vou-te contar um sonho que tive, uma noite apareceu-me em sonho um menino, de repente apareceu vindo de parte nenhuma, apareceu e disse Deus é medonho, disse-o e desapareceu, não sei quem fosse aquela criança, donde veio e a quem pertencia, Sonhos, Ninguém menos do que tu pode dizer a palavra nesse tom, E depois, que aconteceu, Depois comecei a ser prostituta, Já deixaste tal vida, Mas o sonho não foi desmentido, nem mesmo depois que te conheci, Diz-me outra vez, como foram as palavras, Deus é medonho.
p. 265
[…] a ocasião pode sempre criar uma necessidade, mas se a necessidade é forte, terá de ser ela a fazer a ocasião.
p. 276
Maria de Magdala não conhece, de experiência sua, o amor de mãe pelo seu filho, conheceu, enfim, o amor da mulher pelo seu homem, depois de tudo, antes, haver aprendido e praticado do amor falso, dos mil modos de não amor. Quer a Jesus como mulher, mas desejaria querê-lo também como mãe, talvez porque a sua idade não esteja tão longe assim da idade da mãe verdadeira, a que mandou recado para que o filho voltasse, e o filho não voltou, uma pergunta faz Maria de Magdala, que dor irá sentir Maria de Nazaré quando lho disserem, porém não é a mesma coisa que imaginar o que ela própria sofreria se Jesus lhe faltasse, faltar-lhe-ia o homem, não o filho, Senhor, dá-me, juntas, as duas dores, se tiver de ser, murmurou Maria de Magdala esperando Jesus. E quando o barco se aproximou e foi puxado para terra, quando os cestos carregados de peixe escorrendo começaram a ser transportados, quando Jesus, com os pés na água, ajudava ao trabalho e ria como uma criança, Maria de Magdala viu-se a si mesma como se fosse Maria de Nazaré e, levantando-se donde estava, desceu até à borda do mar, entrou na água para estar com ele e disse, depois de beijá-lo no ombro, Meu filho. Ninguém ouviu que Jesus tivesse dito, Minha mãe, pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler.
p. 282
Aproximavam-se o barcos que tinham vindo da margem, acenavam com os braços os que vinham dentro, multiplicavam-se as bençãos e os louvores, e Jesus, resignado, disse, Vamos, o vinho está no vaso, é preciso bebê-lo. Não procurou Maria de Magdala, sabia que ela o esperava em terra, como sempre, que nenhum milagre alteraria a constância dessa espera, e um contentamento grato e humilde pacificou-lhe o coração. Quando desembarcou, mais do que abraçá-la, abraçou-se nela, escutou, sem surpresa, o que Maria de Magdala lhe disse num murmúrio, rente à orelha, o rosto contra a barba molhada, Perderás a guerra, não tens outro remédio, mas ganharás todas as batalhas […].
p. 292
[…] que a força da primavera seria nada se o inverno não tivesse dormido.
p. 327-9
[…] A inquisição é uma polícia e um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas falado antes, Esses foram lançados a fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.
O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi Pastor quem falou, Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus, e Deus, surpreendido, Uma proposta, tu, e que proposta vem a ser essa, o tom era irónico, superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer que não fosse o Diabo, conhecido e familiar de longa data. Pastor fez um silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto que uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado do que o céu, Então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar no mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu çeu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria se esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus, Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus […].