Saímos do Brasil com apenas uma meta objetiva: ir ao I Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais, de 12 a 15 de outubro de 2006 na pequena cidade de Quillacollo, ao lado de Cochabamba. Depois de todas as complicações para sair do Chile, chegamos ao fórum; dois dias atrasados, mas chegamos. O evento foi promovido pela Comunidade Janajpacha, cujos membros são conhecidos como os Pachamama (Mãe Terra, em quéchua).
Lhama na Comunidade Janajpacha.
Havia chilenos, brasileiros, argentinos e colombianos somando-se aos bolivianos e habitantes da comunidade. Temas importantes foram levantados, como a questão mapuche, apresentada por colegas chilenos, mas a falta de apresentações culturais e conteúdos relacionados à ancestralidade boliviana deixaram um pouco a desejar.
A comunidade
Quando o fórum terminou, pedimos para permanecer mais alguns dias no lugar. Queríamos conhecer seu funcionamento, conviver um pouco com seus habitantes. A iniciativa de construção do local foi de Chamalú, guia espiritual e líder da comunidade. Serviços de hospedagem, massagem e outras terapias alternativas suprem as necessidades financeiras.
Algumas pessoas estão lá há dez anos – qualquer um pode ser aceito, desde que queira desenvolver a espiritualidade, respeite as regras e permaneça no mínimo seis meses. Cigarro, bebida alcóolica e drogas ilegais são proibidos. Se alguém quiser fumar ou tomar uma cerveja, tem que sair para dar uma volta. Fomos aceitos entre eles – mesmo que só por alguns dias e sem pagar pela estada -, com a condição de participarmos das tarefas diárias.
Hotel da comunidade (foto de Thiago Martins).
Os moradores da comunidade – vindos da Colômbia, Venezuela, Argentina, Uruguai, México, Inglaterra e de outros países – eram, em sua maioria, jovens. Todos dispostos a descobrir mais sobre si mesmos, a reencontrar sua ligação com a natureza, aprendendo a ser mais compreensivos e solidários, ao mesmo tempo que mais combativos e esclarecidos.
Apesar da aparente adoração à figura de Chamalú não me agradar, admiro a comunidade. Lá conheci pessoas muito boas, que buscam o seu melhor e o dos outros e que, principalmente, têm a coragem de tentar. Mas como diria Raul, “antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever o seu”.
Oruro
Permanecemos cerca de duas semanas na comunidade e fomos para Cochabamba, onde passamos um mês aprendendo a viver de artesanato e malabarismo com novos amigos. De lá fomos para Oruro com os europeus Mathilde e Jeronimo, caminho obrigatório para chegar ao salar Uyuni.
Seca e a três mil metros de altitude, Oruro é uma cidade desbotada – tudo tem cor de pó. O hotel foi o pior que havia enfrentado até então: sem direito a banho, sem janela nos quartos, com banheiros sujos e cheiro ruim. Mas sobrevivemos.
Nessa época passei a me dedicar com mais intensidade ao artesanato e descobri que com uma boa lábia não se morre de fome. Pela primeira vez vendemos realmente bem, principalmente nos barzinhos noturnos. Os europeus também aprendiam a fazer trampo, sem objetivos financeiros, e Jeronimo nos ajudava a vender.
Antiga civilização
Descobrimos que perto de Oruro existem ruínas incaicas. Pegamos um táxi e chegando ao local pedimos informação num posto policial, onde sequer sabiam das ruínas. Fomos caminhando algumas horas por uma paisagem linda – ovelhas, vento, montanha e um pequeno córrego. Alcançamos as antigas habitações indígenas, feitas de barro, com apenas uma pequena abertura de entrada, para proteger o interior do vento. Em tempos remotos,integrantes de uma antiga civilização viveram naquelas casas. Uma energia muito forte, misturada a uma sensação de intemporalidade, me tomou. O vento trazia, de muito longe, canções à Pachamama, contos de rituais, batalhas e fogueiras.
Ruínas em Oruro (foto de Mathilde Bokhorst).
Na volta passamos por um pueblito, um oásis no meio da aridez, na planície em frente ao morro onde se encontram as ruínas. As sociedades incaicas e pré-incaicas costumavam construir as habitações em plano mais elevado, de maneira que se pudesse observar a região ao redor; abaixo, nas planícies, ficavam as plantações.
Imensidão de paz
De Oruro seguimos para Uyuni – cidade excessivamente turísitica, até então só perdendo para San Pedro de Atacama. Achamos um hotel relativamente barato e confortável e fomos pesquisar os pacotes de turismo – para quem não conhece a região não é muito aconselhável desbravar um deserto branco sem um guia.
Eu no salar Uyuni. Foto de Thiago Martins.
Aquele saco de cronograma turístico – dez minutos para tirar fotos aqui, mais dez minutos para comprar souvenirs ali. Chegamos à Isla del Pescado, no meio do Salar, e tínhamos duas horas para desfrutar. Eu e Thiago saímos para caminhar um pouco e acabamos sendo transportados para um universo branco, onde tempo e espaço perdem referências. Uma experiência mágica, surreal. Tenho muita vontade de voltar e passar uma semana acampando, para ver o que uma situação como essa pode fazer com a cabeça – é de enlouquecer mentes tão acostumadas com escalas como as nossas. Outra ideia é rodar um filme, a luz e o visual são deslumbrantes nesse infinito branco.
Nos despedimos de Mathilde e Jeronimo e fomos para Potosí – uma cidade com muita história, que pensei que me encantaria. No começo foi interessante, mas acabou me cansando. As vendas não iam bem, pessoas nos encomendavam trabalhos e não apareciam para buscar. Cansamos de ouvir “no tengo plata”, “más tarde” e de sermos tratados por quase todos como turistas parasitas, com um gélido distanciamento. Ficamos até juntar grana para o transporte e fomos para Tarija, ao sul da Bolívia. Outro clima, outros ares, outra vivência.
Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.
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