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Viajeros – Borboletas no estômago

terça-feira, maio 13th, 2008

Ontem estava lendo um livro no Express Café – o cara saiu de Curitiba para percorrer alguns países da América do Sul, e definiu bem esse sentimento pré-partida: borboletas no estômago.

Correria, dúvidas, procuração, saco de dormir, câmera digital e frutas secas para a viagem – detalhes que parecem infinitos, cronograma apertado nesses últimos dias no aconchego do lar.

No mais, estou indo embora…

 

Enfim, Assunción

Depois de meses de expectativa, em 13 de agosto de 2006 nos encontramos nessa cidade quente, que não sei porque me faz pensar no Brasil uns trinta anos atrás – engraçado, memória de um tempo que não vivi. Estou numa sorveteria, onde a Ali trabalha, inclusive aos domingos. Ela deixou o seu posto para nos buscar na rodoviária e cá estamos.

Consegui o contato da Ali com um amiga que mora em Floripa e é presidente de um comitê da AFS, uma organização que promove intercâmbios culturais; ela recebeu a Ali por alguns dias em sua casa. Assim é a rede que conecta os viajantes. Pelo pouco que já conversamos, pude ver que é uma pessoa muito hospitaleira e dedicada.

Graças a Deus enfiei as roupas de frio bem no fundo da mala. 37°C. Acho que vou tomar um sorvete.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Questão de desordem

quinta-feira, abril 24th, 2008

Quem controla a minha vida?
Minha família? O dinheiro?
A preocupação com a estética?
Meus sonhos e ideais?
Meu corpo, como consciência de matéria?
Minhas aspirações profissionais?
Meus laços de amizade, de sangue, de sentimento?
Tudo isso. Ou nada.

Cruz e Sousa diria que o corpo é o cárcere da alma. Temo discordar. A maior das prisões é quando fazemos nossas as exigências do mundo. Amadurecer, estudar, casar… “Um emprego e uma namorada, quando você crescer”.
Buscamos esses padrões de segurança, mesmo contra nossa vontade, mesmo quando duvidamos desses estigmas sociais. Deixamos de lado nossa pureza, nossas loucuras, nossa dúvida existencial, para continuarmos rodando a engrenagem social.

Capitalismo selvagem, selva de pedra
Olho por olho, dente por dente.

Assim nos tornamos quem somos – atores procurando destaque no cenário mundial.

Reflexão trocada por verdades prontas
Cultura por entretenimento
Filosofia por auto-ajuda
Amor por atração
Sonhos por dinheiro

Tudo isso porque queremos, porque aceitamos o mais cômodo, embalado e pronto para consumo. Não sabemos mais ousar. Temos medo do futuro.
Tememos a noite, mas nos sentimos atraídos por ela.
O imprevisível nos fascina, mas fazemos tudo para evitá-lo.
Cada vez mais procuramos por “aventuras seguras nos fins-de-semana” para quebrar a rotina. Mas somos nós que construímos a rotina.

Procuramos nossa “cara metade”, “alma gêmea”, “o amor de nossas vidas”. Não sabemos aceitar os outros. Evitamos olhar nos olhos. Temos medo de nos expor, de transparecer nossas fragilidades e inseguranças. Criamos uma personagem social para esconder nossa real personalidade, ocultando nossas características mais pessoais e humanas.

Temos medo da solidão.
Temos medo do escuro,
do sofrimento, da desilusão.
Temos medo da vida.

Vivemos num quarto frio,
com paredes padronizadas de tempo e espaço.
Olhamos a vida pela janela
com olhos de fascinação e medo.
Poucos ousam pular.
Costumamos chamá-los de loucos ou gênios.
Eu os chamo de livres.

 

Escrevi esse texto em Curitiba em 2006, um pouco antes de sair de viagem. Encontrei-o no meu caderninho de rascunhos. A citação é de Raul Seixas, da música “Quando você crescer”.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – nos fluxos da América do Sul

quinta-feira, abril 24th, 2008

Recomeça a viagem pela América do Sul. Última chamada para embarque!

 

Um velho sonho e uma mochila

Thiago e eu. Imagem: Manoela Paranhos.

Não sei desde quando tenho essa vontade de viajar. Acho que desde sempre. Lembro que quando era criança eu queria muito ver neve e conhecer o Egito. Lá pelos treze anos queria ir estudar num colégio interno com umas amigas em Maringá. Meus pais não deixaram. Mais tarde, a onda era fazer intercâmbio. Minha mãe decidiu que receberíamos uma intercambista antes, para saber como era. E no ano 2000 chegou a Emma, da Austrália, que ficou um ano com a gente. Foi tão legal que até meu pai gostou. Falou em recebermos uma italiana. E em julho de 2001 foi a vez da Valentina, ela passou seis meses na nossa casa. Acabei desistindo do intercâmbio. Não sei, me pareceu meio parado ficar um ano em uma casa de família. Decidi adiar, sempre cogitando possibilidades, fazendo possíveis planos. Pensava muito na Itália, na Grécia – sonhos europeus.

Vim para Curitiba estudar Comunicação Social, e conheci o Thiago. Desde nossos primeiros momentos juntos fazíamos planos de viagem – não sabíamos muito bem para onde, como ou por quê; era simplesmente uma vontade de se aventurar pelo mundo. Trabalhamos no Banco do Brasil para juntar dinheiro. Passamos no concurso meio sem saber o que estávamos fazendo, quando vimos estávamos dentro de uma agência. Foi horrível, definitivamente um trabalho que não combina com nenhum de nós dois (verdade seja dita, acho que não combina com ninguém). Trabalhei seis meses, o Thiago onze – eu era mais econômica, juntamos mais ou menos a mesma coisa.

Eu estava fazendo curso de italiano e procurando alguma bolsa na Itália. Thiago pensava em viajar um pouco por países latino-americanos e depois me encontrar na Europa para mochilarmos juntos. Até que um dia caiu na minha mão uma edição especial da revista Caros Amigos sobre Che Guevara. Surgiu dentro de mim uma vontade imensa de conhecer a América Latina. Lembro que saímos empolgadíssimos do Cine Luz depois de assistir Diários de Motocicleta. Nós dois, conversando, descobrimos uma maneira de viajar e ainda fazer o TCC – Trabalho de Conclusão de Curso.

Claro! Faríamos nosso trabalho na viagem. Já tínhamos um motivo: “olha mãe, tô indo viajar pela América Latina.” “Como assim, minha filha?!” “Não mãe, fica sossegada, vou fazer meu TCC. Vai ser um ensaio fotográfico sobre o músico latino-americano.” Pronto. Atendidas as normas de segurança social, era hora de pensar objetivamente na viagem – por onde começar, quando começar e por onde seguir.

Falando desse jeito parece que foi tudo planejado – “ah, vamos fazer o TCC pra ninguém encher o saco”. Mas não foi. Acho que quem mais precisava dessa segurança de que estaríamos fazendo alguma coisa “séria” éramos nós mesmos. Compramos máquinas fotográficas analógicas, usadas mas de boa qualidade, filmes, mochila, saco de dormir, isolante, barraca, entre muitas coisas mais. Pensávamos que a grana que tínhamos não seria o suficiente para percorrer tudo o que pretendíamos, por isso Thiago começou a aprender artesanato. Aliás, megalomaníacos! A idéia era sair pelo Paraguai, passar por Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, subir a América Central e chegar até Cuba. E não acabava por aí. Na volta passaríamos pela Venezuela, Guianas, Suriname e Brasil, até chegar de volta ao sul. Tudo isso em um ano, que foi o prazo que cumprimos para voltar e retomar a faculdade.

E assim foi até que roubaram minha mochila onde estavam o cartão de crédito e minhas câmeras fotográficas, uma analógica e outra digital fuleira. De fato, alguns males realmente vêm para o bem. Esse episódio nos fez repensar – afinal, o que estávamos fazendo? O TCC foi uma invenção. Nós saímos do Brasil com um conhecimento rudimentar de foto, estávamos aprendendo tudo na prática. Além do mais, não estávamos nos dedicando ao estudo dos músicos, não tínhamos uma linha construída. E, sem o cartão de crédito, a única maneira que encontrei para sacar dinheiro foi através da Western Union, que cobra uma taxa altíssima pelo serviço. Foi aí que jogamos tudo para o ar: decidimos viver só da grana que conseguíssemos trabalhando, eu também comecei a me dedicar ao artesanato e a utopia de chegar a Cuba caiu por água abaixo. Ficaríamos o quanto desejássemos onde desejássemos. Um outro ritmo, um outro próposito – uma nova viagem.

Por ironia do destino, mesmo abdicando do plano inicial, essa viagem ainda me renderia um TCC. No meio do caminho surgiu a ideia de aproveitar o blog, que já alimentava com relatos da viagem, para fazer um livro-reportagem – que passou por várias mudanças antes do TCC e também depois, edições e reedições, num processo que parece infinito.

Cada vez que re-leio esses textos, me jogo novamente nessa experiência de experimentar e se aventurar. A trajetória dessa viajante que lhes narra é nítida ao longo da obra (e para mim, extremamente emocionante de reviver): começando pelo Paraguai e pela Argentina, ainda com foco nos músicos, descobrindo a ginga que a estrada demanda, presa a um roteiro pré-concebido – mesmo que superficialmente. A primeira grande barreira, imposta pelos condicionamentos sociais, foi quebrada na Argentina: o desafio de pedir caronas e deixar os fluxos do acaso moldarem a viagem. Mas a verdadeira transformação viria mesmo na Bolívia – o turismo, por si só, perde seu sentido. O que importa é a vivência. Mais do que o cartão postal e o souvenir, a trajetória. Mais do que o conforto, a troca. Mais do que um pontinho a mais no mapa, a tomada de consciência. Os textos revelam essa transição, perceptível na maneira de escrever, nos assuntos que mobilizam o relato e no rumo que a viagem foi tomando. O tempo é outro – o relógio e o calendário perdem o seu sentido.

Seguimos fotografando – comprei na Bolívia uma câmera igualzinha a que me foi roubada. E também nas fotos é perceptível o amadurecer da viagem, o aprendizado que propiciou, nesse exercício de alinhar olho, mente e coração, como bem sintetizou o mestre Cartier-Bresson. As imagens são, em sua grande maioria, analógicas, numa mescla de fotografia preto e branco e colorida – o que reflete a viagem como exercício fotográfico, mas também toda a diversidade latino-americana, que extrapola as categorias convencionais, bem como a divisão entre elas. Na espontaneidade e no experimentalismo é que costumam residir as subversões mais verdadeiras.

Guardo um imenso carinho por toda esse percurso, e tenho imensa gratidão à vida, por ter me dado oportunidade e coragem de experimentar o forte sabor – às vezes doce, às vezes deveras amargo, mas sempre real – da vida de viajante. E imensa gratidão à parceria de Thiago – sozinha, nada disso teria acontecido.

Essa história continua tendo sentido pra mim, e com grande alegria vejo que serve de inspiração para colegas que ouvem o sussurro da vida dizendo que há muito mais além dos corredores da rotina atomizada – que há muitas sabedorias emancipatórias pelas estradas da América Latina. Mesmo nossos sonhos de liberdade costumam ser influenciados pela visão dominante do mundo, que nos faz querer ser igual ao opressor, e sempre aponta para caminhos ao norte global: afinal, sob essa lógica, precisamos aprender com os “mais desenvolvidos”. Esse é um importante aspecto desta jornada: a escolha por Latinoamérica já é uma ruptura – e divulgá-la é um modo de amplificar outros discursos, contra-hegemônicos, tão raros nos círculos sociais, nas revistas, jornais, rádios e canais de TV. A diversidade é sufocada por uma visão única de mundo, que se impõe como óbvia. Desconfiemos do óbvio. Disseminemos outros discursos, outras possibilidades. O mundo precisa conhecê-los.

Como se vê, são vários os motivos que me levam a seguir aprimorando esse relato –  mas o principal deles é a paixão. Com toda simplicidade e humildade, e todo o aprendizado que a trajetória implica, lhes ofereço essa canção de liberdade, essa canção da América Latina. Do blog para livro e agora, novamente, para blog. A viagem continua.

 

Veja o próximo post do livro Viajeros.

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