Filho de pastor, criado para ser pastor, ele negou toda sua herança moral. Em meados do século XIX, Nietzsche abriu mão do comodismo e foi o mais fundo que conseguiu na busca da compreensão humana.
Assim Falou Zaratustra é o primeiro livro que leio deste filósofo. Trata dos ensinamentos deste personagem, que após anos e anos lapidando sua conscência e seus sentidos em companhia da natureza, percebe que sua sabedoria não pode se saciar sozinha. Seu cálice deveria esvaziar-se para novamente poder ser preenchido.
No trecho abaixo, Zaratustra fala ao povo de um vilarejo chamado Vaca Malhada.
Das três transformações
¨Três transformações do espiríto vos menciono: como o espírito se converte em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e de carga, respeitoso. A força desse espírito clama por coisas pesadas.
O que há de mais pesado? – pergunta o espírito de carga. E ajoelha-se feito camelo e quer que o carreguem bem. Que há de mais pesado, heróis? – pergunta o espírito de carga – para que eu o deite sobre mim, e a minha força se recreie?
Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sabedoria?
Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela festeja a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?
Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e sofrer fome na alma por causa da verdade?
Ou será estarmos enfermos e despedir a consoladores e travar amizade com surdos, que nunca ouvem o que queremos?
Ou será nos afundar em água suja quando é a água da verdade, e não afastar de nós as frias rãs e os quentes sapos?
Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?
O espírito de carga sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.
No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
Procura então o seu último senhor, quer ser seu senhor, quer ser seu inimigo e de seu último deus; quer lutar pela vitória com o grande dragão.
Qual é o dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor?
‘Tu deves’, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: ‘Eu quero’.
O ‘tu deves’ está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: ‘Tu deves!’
Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:
‘Todos os valores das coisas brilham em mim.
Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o eu quero!’ Assim falou o dragão.
Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não será suficiente a besta de carga, que abdica e venera?
Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode o poder do leão.
Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito de carga e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e próprio de um animal rapace.
Como o mais santo amou em seu tempo o ‘tu deves’, e agora tem de ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa de seu amor. É preciso um leão para esse feito…
Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se converta em criança?
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação.
Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário uma santa afirmação; o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.
Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se converteu em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.”
Assim falou Zaratustra.