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Viajeros – Peru Andino

quarta-feira, dezembro 9th, 2009

Saímos da Bolívia no último dia permitido pelo nosso visto. Depois de três meses em terras bolivianas, entraríamos num país de cultura similar, porém atualmente numa direção política oposta: enquanto a Bolívia bate de frente com o sistema neoliberal em busca de um alternativa, o Peru se esforça por cair nas graças do sedutor desenvolvimento capitalista. Miséria e riqueza mais evidentes na meca do turismo sul-americano.

A cidade branca

Úrsula no terraço de sua casa em Arequipa

Úrsula no terraço de sua casa em Arequipa. Ao fundo, o vulcão Misti.

De Copacabana, ao norte da Bolívia, atravessamos a fronteira rumo a Arequipa, conhecida como “a cidade branca”. Ficamos na casa de Úrsula, que conheci no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais (EIV – MG) em janeiro de 2006. Uns dias depois de nós chegaram Luciana, amiga chilena que visitamos em Valparaíso e que também esteve no EIV, suas duas amigas conterrâneas e o brasileiro Lucas, outro participante do estágio.

Lotamos a casa da família de Úrsula, que deu uma aula de boa vontade. Sua mãe e ela, que estudava gastronomia, preparavam pratos típicos. Seu pai contava das tradições incaicas e até comprou dois porongos de cañazo, a cachaça produzida no Peru, para os brasileiros que chegariam em sua casa. Eles nos levaram para conhecer o mar peruano, em Mollendo. Foi divertido e, principalmente, diferente – uma praia rodeada por deserto.

A chilena Luciana e o mineiro Lucas: nos encontrando pelo caminho.

A chilena Luciana e o mineiro Lucas: nos encontrando pelo caminho.

Já o centro de Arequipa é de fato todo branco, e margeado por três vulcões, com seus cumes nevados brilhando ao sol. A catedral imponente, com um diabo impressionante talhado no púlpito, derrama a sombra de suas torres na praça central tipicamente espanhola, rodeada por arcos e tomada por turistas, vendedores e pedintes.

Passamos cerca de duas semanas em Arequipa. As vendas de artesanato iam bem, mas como não pagávamos alojamento, aproveitamos e tiramos uns dias para produzir tranquilos. Durante esse período, as meninas chilenas e o mineiro foram conhecer o canion do Vale do Colca. Na volta, nos disseram que valia a pena ir lá. Resolvemos seguir a dica.

Local de venda de artesanto no centro de Arequipa: viajantes de diversos países em convivência. Foto de Thiago Martins.

Local de venda de artesanto no centro de Arequipa: viajantes de diversos países em convivência. Foto de Thiago Martins.

Um vale de conto de fadas

O Vale do Colca foi reconhecido como canion não faz muito tempo – a exploração turística é recente. Assim que colocamos o pé em Chivay, uma das cidadezinhas do vale, apareceu um cara anunciando hotel – “dez soles”, ofereceu ele (sim, a moeda peruana é o Sol). “Por cabeça?”, perguntou Thiago, achando caro. “Não, os dois”, respondeu o peruano. Negócio fechado.

Ele nos levou ao local; seu filho abriu o portão. O negociante era o dono e sua família morava lá mesmo. O jardim estava bem cuidado, com flores; o quarto bem ajeitado, com banheiro privado e ducha a gás, bem quentinha – o melhor banho desde o início da viagem. Tudo isso pela menor diária que chegamos a pagar no Peru.

As senhoras de lá usam umas roupas lindas, todas bordadas – um artesanato típico da região. O mercado local não tinha aquela confusão da maioria dos mercados que conheci no Peru e na Bolívia, e a comida era muito boa e barata. E sim, opções sem carne eram possíveis! Mas o melhor foi a paisagem: céu estupidamente azul, sol, montanhas, friozinho – o retrato da tranquilidade.

No hotel, conhecemos um psicólogo belga, de cabelo já todo branquinho, que vive há longa data na Holanda. Desde muito tempo ele trabalha por uns cinco anos e junta uma grana. Depois, vende tudo, inclusive o consultório, e sai de viagem. Ele estava com sua filha e o namorado dela, ambos de 18 ou 19 anos. Acompanhamos eles até Madrigal, um povoadinho a três horas de kombi de Chivay. Tanto na Bolívia quanto no Peru os ônibus são usados para transporte interurbano: dentro das cidades e pelos caminhos do interior, a kombi impera. O bom é que costuma ser barato e o dinheiro não vai para uma grande empresa de transportes – fica com os motoristas-proprietários. Mas sempre tem um lado ruim: como não há fiscalização, e até nem sei se existe uma regulamentação, as kombis costumam circular completamente lotadas. E dessa vez também foi assim.

Saímos antes do sol nascer, e mesmo assim não havia lugar para todos sentarem – nem para as milhares de bagagens que as pessoas sempre levam de um lado para o outro. Sacas de alimentos, animais, tapetes – vi de tudo ser carregado nas viagens pelos Andes, e em grande quantidade. Dessa vez, tinha até gente “semi-em-pé”, pois a altura da kombi não comporta uma pessoa em pé. Mas o impressionante é que o pessoal da região ia bem, conversando, melhor que nós, gringos almofadinhas sentados e enjoados pelo sacolejo – os gringuitos, como eles nos chamaram.

Era sábado, primeiro dia do carnaval no vilarejo. Nos indicaram uma caminhada para chegar à entrada do canion, onde se pode ver os condores planando com exclusividade. Andamos pela estradinha, eu, Thiago e os europeus, cruzando os pequenos sítios; ao longe se viam os montes nevados.

O Vale do Colca é muito frio e alto, mas o sol é bastante forte. O resultado dessa equação é: durante o dia, frio na sombra e calor ao sol; à noite, uma friaca de fazer tremer os ossos. Caminhamos mais de uma hora e chegamos ao início da subida que leva à tal entrada do canion: um zigue-zague assustador desenhado na montanha. Não tive dúvida. “Thiago, sinto muito, não tô afim de subir isso aí, tô pensando em curtir o dia, a festa, vou ver o canion depois do mesmo jeito, então se você quiser ir, boa sorte”. Já tínhamos planejado ir ao cruce del condor, a “encruzilhada do condor”, onde se tem uma bela vista e os turistas vão para ver o pássaro – ou seja, um bom lugar para vender e apreciar a paisagem.

Thiago seguiu subida, eu me dispersei dos outros e sentei na beirada de um riozinho, onde parecia que as montanhas faziam um portal, abaixo de uns buracos altos na rocha que depois fui descobrir serem antigas catacumbas. Voltei andando sozinha por esse caminho lindo, parando para descansar entre as subidas e descidas. De volta ao centrinho, até tentei vender alguma coisa, mas vi que não teria muita saída. Ouvi uma música vindo do terreno de uma casa: a festa começava ali. Havia homens vestidos de mulher e outros de mineiro, com a cara pintada de carvão (los negritos, o povo dizia), além de muita chicha, uma bebida alcoolica fermentada caseira que achei simplesmente horrível, com um tremendo gosto de azedo.

Na festa encontrei Thiago, o senhor belga (que também havia subido o monte) e os dois jovens europeus. Os moradores nos ofereceram comida e chicha, nos tiraram para dançar, pintaram a holandesa de carvão e não queriam que fôssemos embora. Até nos ofereceram um cantinho em sua casa. “Eu quero que vocês se sintam bem, fico feliz que estejam aqui, porque todos somos irmãos. Meu filho foi para o Chile e lá o tratam muito mal, e isso está errado. Não importa de onde viemos, somos todos iguais”, disse a anfitriã, já meio embriagada na alegria da festa. Há uma grande rivalidade entre chilenos e peruanos, que remonta à Guerra do Pacífico, vencida pelo Chile.

Bolívia e Peru versus Chile e Inglaterra

A Guerra do Pacífico ocorreu de 1879 a 1883, envolvendo Chile, Peru e Bolívia. O motivo foi o guano, espécie de esterco de ave acumulado ao longo dos séculos no litoral peruano, e, principalmente, o salitre, substância semelhante ao sal porém com maior teor de sódio. São ambos fertilizantes, que se encontravam em território peruano e boliviano. Naquela época ainda não existiam fertilizantes químicos. Por isso esses produtos eram bastante cobiçados na Europa, onde o solo estava exaurido e a população crescia vertiginosamente.

A exportação do salitre era um negócio peruano e, principalmente, chileno. Quando o governo boliviano resolveu cobrar impostos pelo produto, o Chile, apoiado pela Inglaterra (para quem os chilenos repassavam a mercadoria), invadiu a Bolívia, dominando o território de Antofagasta, onde se encontrava grande quantidade da substância. Em seguida, o Peru teve as regiões de Arica e Iquique abocanhadas pelo Estado chileno. Essa guerra deixou profundas marcas: para os chilenos, ficou o orgulho da vitória e a sensação de superioridade perante seus vizinhos derrotados; já os peruanos odeiam os chilenos, afinal seu país terminou a guerra dilacerado; e a Bolívia até hoje exige de volta sua saída para o mar, perdida na guerra.

Condores e flashes

Apesar dos convites para ficar em Madrigal, voltamos a Chivay. Devíamos partir em breve: nosso dinheiro estava acabando, as vendas não iam bem e não havia caixa automático para sacar (a essa altura já havia recuperado o cartão – minha mãe enviou um novo via correio para Arequipa). Tivemos sorte de pegar a kombi vazia.

No dia seguinte fomos ao cruce del condor. Havia mamitas vendendo roupas de lã de alpaca – um animal semelhante à lhama, porém mais peludo. O lugar era realmente muito bonito, mas cheio de turistas. Quando a estrela da festa, o condor, apareceu, houve o maior rebuliço: turistas correndo com máquina fotográfica na mão para registrar a imagem da majestosa ave. Eu, me sentindo meio boba no meio daquele súbito alvoroço, segui a leva de turistas para ver o condor – afinal, nunca tinha visto um. O passáro símbolo da liberdade distraidamente deu o seu espetáculo.

Vendemos somente o suficiente para pagar o transporte de ida e volta ao cruzamento. Tínhamos a grana certa para a passagem até Arequipa; faltava acertar a última diária do hotel. Explicamos a situação para a mulher do negociante, também dona do hotel, deixamos uns brinquinhos e uma pulseira e ficou tudo bem.

Voltamos para Arequipa, parada obrigatória entre o Vale do Colca e Cusco. Essa noite me senti mal e tive febre. Mal sabia eu que era só o começo.

Cusco para quem pode pagar

Um sujeiro vestido de inca falando ao celular – ganha a vida posando para fotos. Uma mamita tenta vender a todo custo os cintos que produz. Um anunciante de rua me aborda – “TATUAGENS, PIERCINGS, marihuana, cocaína, ópio, heroína…”, alardeia, diminuindo a voz à medida que vai falando. Turistas bêbados com os “free drinks fisga cliente” a cada esquina. Mendigos por todos os lados. Milhares de taxis buzinando o tempo todo. Cusco, o ponto alto do turismo na América do Sul, a cidade plastificada onde igrejas foram construídas sobre templos incaicos.

Foram vinte dias de fraqueza, dor de barriga, tontura, vômito e diarréia. O motivo é um mistério: fui ao posto de saúde local, fiz exames, mas nada foi diagnosticado. Quando saía para tomar um ar, voltava ainda pior. A falsidade de Cusco me sufocou. Tudo ao seu alcance, se você puder pagar.

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Bolívia: um outro mundo

domingo, setembro 27th, 2009
Luz na Ilha do Sol.

Luz na Ilha do Sol.

Depois de três meses vamos deixar a Bolívia, esse lugar de cultura tão diferente, que eu pensei ter que viajar muito mais longe para encontrar. Um país que parece ter parado no tempo, que fascina a alguns e assusta a outros.

Ter a sorte de achar um estabelecimento que aceite cartão de crédito é como ganhar na loteria. Os ônibus são um tanto arcaicos (e as estradas então, nem se fale). As “mamitas” ainda usam suas roupas da época da colonização: saia rodada até o joelho, chapéu e tranças. É comum ver homens com a bochecha enorme e a boca verde. Mascam coca. Todos os brasileiros perguntam com excitação sobre a coca, como se fosse algo muito subversivo. Lá, faz parte da cultura cotidiana: a coca é a folha sagrada dos povos andinos, além de dar energia, abrandar a fome e ser bastante eficaz para aliviar os efeitos da altitude.

Vegetarianos, se preparem. Encontrar uma refeição sem carne, principalmente frango, é uma jornada. Pode-se comprar pães e frutas no mercado, mas se você é como eu, que não aguenta muito tempo sem uma refeição quentinha, vá aquecendo as pernas e a língua.

Inicialmente tentávamos assim: “olá senhora, tem alguma coisa sem carne?”, mas como a resposta era sempre negativa, mudamos de tática. Perguntávamos primeiro “o que tem para comer?”, e depois “dá para fazer a mesma coisa sem carne?”. Os vendedores olhavam com uma cara de “como sem carne?”, então explicávamos que existem comidas que não são carne, como um prato com arroz, batata e salada. A maioria respondia que não, outros aceitavam e até cobravam mais barato. Virávamos clientela fiel.

Copacabana e a Ilha do Sol

Em Tarija juntamos uma boa grana, suficiente para ir direto a La Paz comprar material para artesanato e seguir rumo a Copacabana. Passamos um dia e uma noite na capital boliviana. Após um bom tempo longe de metrópoles, foi um tanto quanto estranho ser engolidos pela selva de pedra.

La Paz tem regiões bonitas, mas paz que é bom eu não tive não. Pessoas apressadas e preocupadas, tragadas pelo cimento, asfixiadas pela fumaça. Thiago fez um pouco de malabares e disse que nunca tinha visto pessoas que pareciam tão sérias e tristes enquanto pedia contribuições.

Compramos passagem para Copacabana, às margens do lago Titicaca, pensando que curtiríamos uma praia. Até podia ser, se não fosse tão frio. Foi muito bom para vender, havia muitos turistas, mas descobri que no mundo do artesanato nem tudo são rosas. Existem os chamados “malucos de escola antiga”, artesãos que já estão há muito tempo na estrada, que às vezes têm um código de ética meio estranho.

Passamos o ano novo em Copacabana e já no dia dois de janeiro tomamos um barco para a Ilha do Sol. O barco chegou do lado turístico da ilha, dominado por albergues e gringos. Nós tínhamos a indicação de procurar Dom Tomás, um senhor que oferece quartos e permite acampamento do outro lado da ilha, onde só vivem alguns nativos. O problema é que entre nós e o outro lado havia uma dessas grandes montanhas andinas, a quatro mil metros de altitude, e tínhamos que carregar nossas mochilas de 75 litros lotadas de material, roupas e comida para acampar.

Pagamos todos os nossos pecados subindo, ainda ganhamos uns bônus celestiais descendo e enfim chegamos à casa de Dom Tomás, um senhor boliviano muito simpático. Ele fez algumas gracinhas e indicou onde poderíamos armar a barraca. Alguns artesãos argentinos já estavam lá, em volta da fogueira, esquentando água para o mate.

Ilha do Sol.

Ilha do Sol.

O acampamento era muito simples – o quintal do Seu Tomás. O banheiro era uma fossa e não tinha ducha, o banho era no Titicaca mesmo. Como a água era muito fria, confesso que em uma semana na Ilha do Sol encarei o banho só uma vez.

Criamos uma rotina juntos, nós e os argentinos. Aprendi muito com eles, em vários aspectos. Alguns deles viajavam de bicicleta, já tinham percorrido seu país e o Brasil. As meninas me passaram novos pontos de macramê e a convivência ensinou a ser mais fraternal, a dividir as coisas e a tomar iniciativa. Essas experiências comprovam que não importa o tempo que passamos juntos, sempre é possível fazer verdadeiros amigos.

O ambiente contribuía – a Ilha do Sol é deslumbrante, mágica. Lindo céu, lindo lago, lindas montanhas, um local sagrado para os incaicos. É um daqueles lugares que tenho certeza que vou voltar, com mais tempo para desfrutar.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Artesãos argentinos e bolivianos na Ilha do Sol.

Hasta luego, Bolívia

Um pouco estranho sair da Bolívia. Esse país nos ensinou muito, foi o cenário propício para intensas metamorfoses. Ao encontrar uma cultura tão diferente, alguns acham mais fácil tachá-la de bizarra. Tentar compreender exige mais tempo e paciência, mas é muito mais bonito.

Chiquita. Ilha do Sol.

Chiquita. Ilha do Sol.

A Bolívia é um país onde as tradições ainda estão vivas, onde a exploração colonial foi arrasadora e o neoliberalismo não encontrou grandes interesses. Uma nação explorada até por seus vizinhos, todos eles, que dentro do sistema de exploração se aproveitam dos ainda mais fracos. Mas esse povo cansou de ser fraco, cansou de ser explorado. Essa atitude se revela nos inúmeros conflitos e na difícil situação social na qual se encontra a Bolívia. Situação de mudança, de tomada de consciência, que infelizmente muitas vezes é confundida com revolta cega e sede de sangue.

Eu não entendi a Bolívia. Acho que nunca vou entender. Mas a aceitei, e aprendi a desfrutar de sua cultura tão distinta.

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Entre passeatas e cachoeiras

segunda-feira, agosto 24th, 2009

Uma família em cima da cascatinha, seguindo o curso do rio. Guarda-chuvas para se proteger do sol. Eu de frente para a cascata, sentada numa pedra, com os pés na água. Chuá, chuá, chuá.

Acabamos de almoçar. Thiago está se preparando para ir trabalhar. Eu fico aqui cuidando das coisas, barracas e mochila. Virei ama de casa por uns dias.

Estamos acampados em Coimata já faz uma semana, a vinte minutos de Tarija – capital do departamento que também se chama Tarija, fronteira com a Argentina. Sob este solo se encontra a maior riqueza da Bolívia: o gás natural. Tem gente aqui com muita grana, e essa história de nacionalização não lhes vem muito a calhar.

Autonomia

O país está em turbulência. Uma nova constituição nacional será elaborada. Em alguns departamentos, os mais ricos, um movimento contrário à política presidencial está tomando as ruas com passeatas e promovendo greves de fome. Eles querem autonomia departamental na exploração dos recursos e que a constituição seja aprovada com dois terços do congresso, e não com maioria simples. Integrantes do movimento afirmam que como Evo Morales já tem maioria no congresso poderá aprovar o que quiser, inclusive o controle federal das reservas de gás natural e a reforma agrária, mudanças que consideram muito radicais. Nos dias em que estávamos na cidade aconteceu uma marcha, na qual milhares de pessoas carregavam velas acesas.

Ao meu ver, esse movimento está mais para a autonomia dos bolsos endinheirados que fazem das ruas de Tarija uma passarela, onde se desfilam as novas e caras tendências da moda e carros importados. Isso no país mais pobre da pobre América do Sul. E a massa segue a elite, enchendo as ruas. Autonomia – parece bonito, não?

Barraca, cachoeira, fogueira e violão

Chegamos aqui para passar o dia, dormiríamos na casa de um casal de artesãos. Coimata é um lugar com várias cachoeiras, nos arredores de Tarija. Trouxemos sacos de dormir, uma panela, casacos e um pouco de comida. No final das contas o casal não veio: dormimos ao relento, sob as estrelas, aquecidos pelo fogo. Acordamos com o sol nos fritando e fomos direto para a fossa, onde a cachoeira deságua.

Nossa cozinha em Coimata.

Nossa cozinha em Coimata.

No hotel, de volta a Tarija, uma senhora me chamou: “venha ver, minha filha, estou vendendo umas coisas, entra, entra”. O que uma velhinha poderia ter que me interessasse? Mais por educação, respondi à sua solicitação e fui ao seu quarto.

Não sei como a velhinha tinha tanto trambolho no hotel. Soldado, nosso amigo malabarista e companheiro em Tarija e Coimata, comprou uma mochila por quarenta bolivianos, equivalente a uns dez reais. Eu me interessei por uma barraca, muito melhor que a minúscula quebra-galho que tínhamos, e um tripé, ambos novinhos. Noventa bolivianos os dois, menos de vinte e cinco reais.

A barraca velha, demos para Soldado. “Pronto, vamos viver em Coimata, temos tudo o que precisamos e ainda economizaremos a grana do hotel”, disse ele. Soldado é de Jujuy, província ao norte da Argentina. Louco, comprovando minha tese sobre os argentinos. Ele tinha acabado de trabalhar numa festa e estava com o pagamento no bolso. Sua namorada o esperava em outra cidade, era o casamento de alguém da família dela. O objetivo dele era usar a grana para alugar um terno, para poder acompanhá-la. E lá estava ele, de noite, cansado, com frio, esperando o ônibus que o levaria até ela. Até que passou um busão com destino a Tarija. “Seria tão bom passar a noite dormindo nesse ônibus quentinho e acordar na Bolívia”, pensou. E foi o que ele fez, sem avisar ninguém.

Soldado faz mágica com os malabares (tirei umas fotos dele em um de seus números com enormes pomelos, espécie de laranja gigante, mas ele pediu os negativos encarecidamente, o que me impede de publicá-las aqui), e nunca para de falar e fazer palhaçadas. Ele e Thiago iam à cidade trabalhar alguns dias e eu ficava sozinha, me nutrindo do silêncio. Quando eles voltavam, festa – com Soldado não podia ser diferente. Ele foi embora ontem, de volta à sua terra.

Depois de tanto tempo presos em cidades, viver em plena natureza está sendo muito bom, revitalizando as energias. Sombra, fogueira e água fresca; precisa de mais?

Soldado e eu  - com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

Soldado e eu – com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

 

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Bem longe daqui

segunda-feira, agosto 10th, 2009

Calor, sol, praia e axé.

Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. Julho de 2009.

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Garoa no Pelô

domingo, agosto 2nd, 2009

Pelourinho, Salvador. Julho de 2009.

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Sincretismo Baiano

sexta-feira, julho 31st, 2009

Mesmo em templos cristãos, o sincretismo está presente em Salvador. Construídas por escravos, as igrejas transportam para um outro tempo, no qual a fé imposta misturou-se aos ritos ancestrais. Essas construções são testemunhas da história, do suor, da imposição e do desenvolvimento dessa cultura mista, única – brasileira.

Pelourinho, Salvador (BA). Julho de 2009.

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Crônica do avião

quarta-feira, julho 29th, 2009

Tenho certeza que nenhum mortal que tenha conhecimento da possibilidade moderna de voar seja indiferente ao avião. Medo ou fascínio, esse objeto é o centro de um universo paralelo. O ritual começa e termina nos aeroportos, espaços de transição entre o real e o imaginário, o aqui e o lá. Malas, check in, espera, souvenirs – e aquela costumeira inquietação de perder o voo, mesmo estando sentado em frente ao relógio esperando o momento de embarcar.

O caminho tubular até o avião, o “bom dia” sorridente das aeromoças e auxiliares de bordo, a procura do assento pré-determinado, a ginástica para se movimentar nesse espaço apertado e a breve espera – todos os procedimentos ritualísticos se desenrolam um a um, até que tudo esteja perfeito para que possamos, numa máquina pesadíssima, contrariar as leis naturais e alçar voo.

Eu sempre agarro firme nos braços da poltrona na hora de decolar e aterrissar – a turbina parecendo que vai explodir, a transição da corrida para o voo (e se passa um cachorro, um urubu entra na turbina, se a roda encontra uma pedra, se o mecanismo fatalmente falha?), a velocidade impulsionando o corpo, os pés se agarrando ao piso e uma breve prece, algo como “tudo vai dar certo”, às vezes seguido de um “amém”.

O pedido de proteção é o superego atuando, a percepção da vulnerabilidade e seu enfrentamento. Surge primeiro a auto-exaltação, a crença de que eu sou mais forte do que o destino ou a casualidade ou simplesmente a morte e que se eu me concentrar nada nunca jamais vai acontecer comigo. Seguem-se enxurradas racionais – estatísticas que comprovam que os aviões são bem mais seguros que os carros, e o fato de eu nunca ter conhecido alguém que tenha conhecido alguém que sofreu um acidente de avião completa a defesa. Mas aí vêm as lembranças do avião da Air France (maldita mídia sensacionalista), de diversos outros acidentes aéreos por todo o mundo que ocupam as manchetes periodicamente e dos inúmeros filmes de suspense e ação envolvendo turbulências, despressurização, quedas e mortes. Lost, Náufrago e Premonição que o digam, sem citar os 326 envolvendo o tema que já passaram na Tela Quente.

Neste duelo entre Deus e o diabo, a fé e a descrença, a auto-confiança vence o terror. A razão e o misticismo convergem num ponto: de quê adianta ter medo? Afinal, esse momento já vai passar (oras, não é sempre assim?) e logo estarei vendo piscininhas do tamanho de peças de lego e rios como filetinhos de água. Pronto, me convenci. E o avião decola. Frio na barriga. Olha, eu tô voando! O mundo está ficando para baixo e parece de brinquedo! Eu sempre me fascino (e sempre quero sentar na janelinha). Fruto da mentalização ou não, nenhum avião me deixou na mão (ou no chão). Que assim seja!

Após a tensão, a tranquilidade das nuvens.

Após a tensão, a tranquilidade das nuvens.

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Viajeros – Sabedorias ancestrais, Oruro e deserto de sal

terça-feira, julho 7th, 2009

Saímos do Brasil com apenas uma meta objetiva: ir ao I Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais, de 12 a 15 de outubro de 2006 na pequena cidade de Quillacollo, ao lado de Cochabamba. Depois de todas as complicações para sair do Chile, chegamos ao fórum; dois dias atrasados, mas chegamos. O evento foi promovido pela Comunidade Janajpacha, cujos membros são conhecidos como os Pachamama (Mãe Terra, em quéchua).

Lhama na Comunidade Janajpacha.

Havia chilenos, brasileiros, argentinos e colombianos somando-se aos bolivianos e habitantes da comunidade. Temas importantes foram levantados, como a questão mapuche, apresentada por colegas chilenos, mas a falta de apresentações culturais e conteúdos relacionados à ancestralidade boliviana deixaram um pouco a desejar.

A comunidade

Quando o fórum terminou, pedimos para permanecer mais alguns dias no lugar. Queríamos conhecer seu funcionamento, conviver um pouco com seus habitantes. A iniciativa de construção do local foi de Chamalú, guia espiritual e líder da comunidade. Serviços de hospedagem, massagem e outras terapias alternativas suprem as necessidades financeiras.

Algumas pessoas estão lá há dez anos – qualquer um pode ser aceito, desde que queira desenvolver a espiritualidade, respeite as regras e permaneça no mínimo seis meses. Cigarro, bebida alcóolica e drogas ilegais são proibidos. Se alguém quiser fumar ou tomar uma cerveja, tem que sair para dar uma volta. Fomos aceitos entre eles – mesmo que só por alguns dias e sem pagar pela estada -, com a condição de participarmos das tarefas diárias.

Hotel da comunidade (foto de Thiago Martins).

Os moradores da comunidade – vindos da Colômbia, Venezuela, Argentina, Uruguai, México, Inglaterra e de outros países – eram, em sua maioria, jovens. Todos dispostos a descobrir mais sobre si mesmos, a reencontrar sua ligação com a natureza, aprendendo a ser mais compreensivos e solidários, ao mesmo tempo que mais combativos e esclarecidos.

Apesar da aparente adoração à figura de Chamalú não me agradar, admiro a comunidade. Lá conheci pessoas muito boas, que buscam o seu melhor e o dos outros e que, principalmente, têm a coragem de tentar. Mas como diria Raul, “antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever o seu”.

Oruro

Permanecemos cerca de duas semanas na comunidade e fomos para Cochabamba, onde passamos um mês aprendendo a viver de artesanato e malabarismo com novos amigos. De lá fomos para Oruro com os europeus Mathilde e Jeronimo, caminho obrigatório para chegar ao salar Uyuni.

Seca e a três mil metros de altitude, Oruro é uma cidade desbotada – tudo tem cor de pó. O hotel foi o pior que havia enfrentado até então: sem direito a banho, sem janela nos quartos, com banheiros sujos e cheiro ruim. Mas sobrevivemos.

Nessa época passei a me dedicar com mais intensidade ao artesanato e descobri que com uma boa lábia não se morre de fome. Pela primeira vez vendemos realmente bem, principalmente nos barzinhos noturnos. Os europeus também aprendiam a fazer trampo, sem objetivos financeiros, e Jeronimo nos ajudava a vender.

Antiga civilização

Descobrimos que perto de Oruro existem ruínas incaicas. Pegamos um táxi e chegando ao local pedimos informação num posto policial, onde sequer sabiam das ruínas. Fomos caminhando algumas horas por uma paisagem linda – ovelhas, vento, montanha e um pequeno córrego. Alcançamos as antigas habitações indígenas, feitas de barro, com apenas uma pequena abertura de entrada, para proteger o interior do vento. Em tempos remotos,integrantes de uma antiga civilização viveram naquelas casas. Uma energia muito forte, misturada a uma sensação de intemporalidade, me tomou. O vento trazia, de muito longe, canções à Pachamama, contos de rituais, batalhas e fogueiras.

Ruínas em Oruro (foto de Mathilde Bokhorst).

Na volta passamos por um pueblito, um oásis no meio da aridez, na planície em frente ao morro onde se encontram as ruínas. As sociedades incaicas e pré-incaicas costumavam construir as habitações em plano mais elevado, de maneira que se pudesse observar a região ao redor; abaixo, nas planícies, ficavam as plantações.

Imensidão de paz

De Oruro seguimos para Uyuni – cidade excessivamente turísitica, até então só perdendo para San Pedro de Atacama. Achamos um hotel relativamente barato e confortável e fomos pesquisar os pacotes de turismo – para quem não conhece a região não é muito aconselhável desbravar um deserto branco sem um guia.

Eu no salar Uyuni. Foto de Thiago Martins.

Aquele saco de cronograma turístico – dez minutos para tirar fotos aqui, mais dez minutos para comprar souvenirs ali. Chegamos à Isla del Pescado, no meio do Salar, e tínhamos duas horas para desfrutar. Eu e Thiago saímos para caminhar um pouco e acabamos sendo transportados para um universo branco, onde tempo e espaço perdem referências. Uma experiência mágica, surreal. Tenho muita vontade de voltar e passar uma semana acampando, para ver o que uma situação como essa pode fazer com a cabeça – é de enlouquecer mentes tão acostumadas com escalas como as nossas. Outra ideia é rodar um filme, a luz e o visual são deslumbrantes nesse infinito branco.

Nos despedimos de Mathilde e Jeronimo e fomos para Potosí – uma cidade com muita história, que pensei que me encantaria. No começo foi interessante, mas acabou me cansando. As vendas não iam bem, pessoas nos encomendavam trabalhos e não apareciam para buscar. Cansamos de ouvir “no tengo plata”, “más tarde” e de sermos tratados por quase todos como turistas parasitas, com um gélido distanciamento. Ficamos até juntar grana para o transporte e fomos para Tarija, ao sul da Bolívia. Outro clima, outros ares, outra vivência.

 

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Viajeros – De Cochabamba à cidade mais alta do mundo

segunda-feira, maio 25th, 2009

Bolívia, mais de quatro mil metros de altitude. Ladeiras margeadas por casas de séculos passados, lembrança de Ouro Preto. Potosí foi a maior fonte de prata da metrópole espanhola, testemunhou o esbanjamento de uma elite parasita e a cruel exploração dos indígenas. Hoje vive do turismo, e claro, de suas minas.

Já estamos há mais de um mês neste país que tem o dom de mudar o olhar de todos que o visitam (ao menos dos que se entregam). Chegamos do Chile para o tal fórum do qual tanto queríamos participar, nas imediações de Cochabamba. Vivemos cerca de trinta dias nesta cidade – pela primeira vez verdadeiramente artesanos.

Nosso dinheiro acabou. Estamos sem cartão para saque. Mas descobrimos que sim, podemos nos sustentar com artesanato e malabares. Temos que nos privar de pequenos luxos, mas nada que faça muita falta.

Ontem foi meu aniversário. Jantamos num moquifo à la boliviana – ovo frito, arroz, batata e salada por três bolivianos e cinquenta, cerca de um real. Não tínhamos grana para uma grande comemoração, mas afinal, para quê? Quer coisa mais única que estar em Potosí, na entrada de um show de rock, vendendo artesanato na fila?

Uma nova e estranha família

No nosso segundo dia em Cochabamba, Thiago viu um artesão com cara de brasileiro; Charlie olhou para Thiago e pensou que fosse colombiano. Se identificaram um no outro. Charlie é uma figura; tem trinte e três anos, uns bons quilos, cabelo encaracolado comprido e meigos olhos esverdeados. Ele nos avisou de um alojamento mais barato que aquele onde estávamos, limpinho e com direito a banho pela manhã (aqui na Bolívia, pela escassez de água nas áreas altas e secas, não é em todo lugar que a diária inclui banho). Acordávamos com ele cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos, num português truncado, e fazendo umas coisas esquisitas que ele dizia ser capoeira.

Já no caminho para o Alojamiento Roma encontramos um alemão magro, alto, com olhar de psicopata. Ele toca um instrumento que parece uma fera rugindo, sente a energia dos cristais e vende pulseiras da sorte. “Faça um desejo do fundo do coração, e que não prejudicará a ninguém”, diz ele ao atar o nó no pulso de seus clientes. Quando perguntam quanto custa, ele responde: “um desejo não tem preço, dê a contribuição que achar justa”. E ele realmente se concentra quando está fazendo suas singelas pulseirinhas, para distribuir boa energia pelo mundo.

Deixamos nossas coisas no alojamento e fomos trabalhar junto com Charlie e Oscar, seu amigo também colombiano, em frente à universidade. Oscar é grandão, negro e, apesar da aparência robusta, é inocente como uma criança. Já no primeiro dia foi só eu comentar que estava com fome que ele comprou um lanche para mim. Outro dia perguntou por que eu não usava brincos, falei que minha orelha inflama. Ele me deu uns brincos de coco que tinha para vender, que não infeccionam. Perguntei a quanto ele vendia. “Não, por favor, é um presente”, respondeu.

Depois conheci Martin, o uruguaio de 20 anos que já está há seis na estrada, e a brasileira Alice, sua namorada, estudante de geografia que cogita não voltar às salas de aula. Os dois estavam vivendo no Rio na mesma época, mais ou menos um ano antes. Tinham os mesmos amigos, mas foram se conhecer só na Bolívia. Ele com seus claros dreads desgrenhados, cara magra e língua afiada, disfarçando uma doçura latente. E ela tranqüila, seguindo as ondas da vida. Martin faz arte com alicate e arame, e ridicularizava Charlie, que revende bugigangas compradas em camelôs. O colombiano não ligava, retrucava com humor.

À noite o movimento na universidade é fraco, então os vendedores vão para a praça central. É o ponto de confluência da cidade: num canto fica o pessoal da igreja, o pastor clamando contra satanás e as ovelhinhas aplaudindo; do outro lado ficam os comediantes rodeados por uma pequena multidão, a atração mais disputada da praça; entre os dois eventos alguns homens discutem política. Um dia me enfiei no meio da homarada e ouvi um pouco. Estava interessante, discutiam o que é cultura.

Por toda a praça há trabalhadores informais vendendo artesanato, pipoca, sorvete, café, cuñapé (pão de queijo boliviano) e tudo mais que alguém resolver oferecer. Jimi, um boliviano que viajou cinco anos pelo Brasil, também passava a noite estendendo seu pano na praça. Ele foi pego pela imigração em Joinville, passou um mês na cadeia – segundo ele, foi bem legal; a galera era gente boa e tinha uns assaltantes de banco que pediam as melhores comidas pelo celular – e depois foi deportado para a Bolívia. Em São Paulo, numa madrugada na Praça da República, ele me disse que viu uma nave espacial pousando. Todo mundo (uma galera bebendo madrugada adentro) já estava dormindo e ele ficou paralisado – os ETs fazem o tempo parar para que ninguém possa vê-los. Uma porta se abriu e contra a luz, de canto de olho, ele viu três extraterrestres: o pai, o filho e o espírito santo. “Como na Bíblia, menina, eles vieram para ver sua criação. Eles criaram a Terra, e outros devem ter criado o planeta deles, e sei lá no que isso vai dar”, me contou com seu português de mano paulista. Mas o que ele queria mesmo era conhecer uma gringa que o levasse para a Europa. “Esse alemão é louco, sai da Europa para vender pulseirinhas na Bolívia. Se fosse eu, ficava lá e fazia uma grana”, falava ele rindo. Mais tarde encontraríamos Jimi novamente, em Copacabana. Ele estava com uma gringa.

A vila do Chaves

O Alojamiento Roma é separado apenas por um muro do Alojamiento Cochabamba – antigamente eram um só. No Roma estávamos, além de Thiago e eu, o Alemão, Jimi, Oscar e Charlie. Depois chegaram Jeronimo, metade inglês e metade espanhol, um norueguês, a holandesa Mathilde, quatro malabaristas chilenos, um paraense e sua namorada portuguesa que tinha que mostrar o passaporte para provar que não era brasileira.

Do outro lado do muro estavam Martin e Alice, e chegaram dois casais de artesãos que viajam com filhos pequenos. Parecia a vila do Chaves, ou Chavo del Ocho, nome original da clássica série mexicana. Ao acordar todo mundo tomava banho e ficava conversando no estreito espaço entre os quartos e o muro. À noite o povo se juntava em frente à porta do nosso quarto, onde havia cadeiras e mesinha, e ficávamos conversando até que, um por um ou em grupos, todos iam para seus quartos ou para algum barzinho. E claro, sempre naquele esquema: se alguém tem comida, divide com todos, e assim com água, bebida, enfim, tudo.

Ninguém conseguia ir embora. Mas, no final das contas, o rio segue. Jeronimo e Mathilde, que acabaram ficando juntos, estavam indo para o Salar Uyuni, passando por Oruro. Eu e Thiago aproveitamos para seguir viagem.


Charlie posando com suas artesanias; atrás Oscar iniciando uma venda. Praça central de Cochabamba, outubro de 2006. Foto de Mathilde Bokhorst.
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Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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Viajeros – Uma espiadinha no Chile

terça-feira, abril 21st, 2009

Yerko, um chileno que conheci na Bolívia, definiu o Chile de uma maneira bem engraçada: o condado dos hobbits. Naturalmente isolados do mundo pela Cordilheira dos Andes e pelo Pacífico, os chilenos levam sua vida tranquilos, e apesar de chegarem notícias do mundo inteiro, elas parecem tão distantes…

A imagem que eu tinha do Chile era a de “país mais desenvolvido da América Latina”. Mas o termo “desenvolvimento” junto com “América Latina” sempre é uma piada – só abarca uma elite.

Passamos duas semanas no Chile – dez dias em Valparaíso e quatro rumo à Bolívia. O que escrevo aqui são interpretações pessoais e opiniões de pessoas que conheci, que para mim fizeram sentido. Não tenho pretensões de revelar verdades, para isso já existem a enciclopédia e o dicionário.

Valparaíso

Conheci Luciana em janeiro de 2006 no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais. Contei a ela dos meus planos de viagem e me convidei para ficar na sua casa no Chile. Ela, muito solícita, disse que estaria nos esperando em Valparaíso, cidade onde vive.

Casa da Luciana.

Nunca tinha ouvido falar desse lugar, apesar de ser a segunda maior cidade do Chile, o principal porto do país, sede do poder legislativo nacional e ficar a menos de duas horas de carro de Santiago.

Um porto, seguido pelo centro ao nível do mar, rodeado por quarenta e tantos morros – essa é Valparaíso. A cidade tem um sério problema com coleta de lixo, por isso é relativamente suja. Apesar de ser grande, com mais de um milhão de habitantes, são poucos os edifícios altos, o que a torna mais aconchegante, com um ar provinciano.

Valparaíso tem fama de ser violenta. Uma certa noite estávamos os três – eu, Thiago e Luciana – voltando de um bar. Luciana viu dois homens nos seguindo do outro lado da rua, justamente quando estávamos a menos de uma quadra de sua casa. Eles pararam e pegaram um pau. Seu amigo tinha sofrido uma tentativa de assalto idêntica, no mesmo lugar, pouco tempo atrás. Ele conseguiu fugir. Diante da situação demos meia volta e esperamos; quando voltamos, eles não estavam mais lá. Isso nunca tinha acontecido com a Luciana – nunca a roubaram, apesar de já terem tentado abrir sua mochila no corre-corre da rua algumas vezes. É preciso estar atento e tranqüilo – o perigo existe, mas a paranóia costuma tomar proporções desmedidas.

Perigos à parte, nossa passagem por Valparaíso foi bastante agradável. O melhor da cidade são os morros, repletos de casinhas coloridas, entrecortados por caminhos que só quem vive ali percorre sem se perder. A vista noturna é pura poesia: milhares de pontinhos de luz ondulantes até perder de vista; do outro lado, o pacífico, trazendo os ares do Oriente. Não é à toa que Pablo Neruda tinha uma casa ali.

Para inglês ver

Colada em Valparaíso está Viña del Mar, onde vivem as pessoas mais endinheiradas do Chile. Tudo dentro do moldes turísticos: avenidas margeadas por palmeiras, hotéis de luxo, cassinos, restaurantes e tudo caro, muito caro.

Fomos dois dias a Viña para vender artesanato. Thiago ganhou uma graninha fazendo malabarismo no semáfaro e eu, como de costume, não vendi nada. Mas valeu à pena: vi o por do sol no Pacífico, a primeira vez que vi o sol se por no mar (no Brasil, vemos o sol nascer no mar, a não ser que estejamos numa ilha – questão de bússola). Voltamos a Valparaíso caminhando. Um trajeto de duas horas, que já havíamos percorrido na ida. Cheguei exausta, faminta e queimada do sol. Todos riram da brasileira que ficou vermelha no Chile.

Trauma e silêncio

Os horrores do regime militar ainda estão muito vivos na memória chilena, uma ferida não-cicatrizada. Quando a ditadura brasileira estava no auge da sua repressão, época de exílio, mortes e torturas, meus pais eram crianças tornando-se adolescentes. No Chile, a ditadura terminou em 89, sendo que a década de oitenta ainda foi testemunha do braço de ferro de Pinochet. Luciana conta que na sua infância seu pai recebia pessoas em casa que ficavam o tempo todo dentro de um quarto, não saíam nem para comer. Eram perseguidos políticos. A geração atual chilena carrega em si as marcas desse período.

Depois da ditadura veio o neoliberalismo, que ao que tudo indica se adaptou muito bem aos diversos climas chilenos, desde o desértico norte até o gélido sul. As opiniões de Yerko e Luciana convergem em um ponto: parece que a propaganda do governo funciona bem, que o povo acredita nessa imagem de desenvolvimento, que estão na melhor situação que poderiam estar, enquanto os problemas sociais são evidentes – mendigos pelas ruas, muito trabalho informal, violência e discriminação racial. Os mapuches, indígenas originários da região centro-sul chilena, são os que mais sofrem com a pretensa estabilidade, e são uns dos poucos que ousam levantar a voz.

A causa mapuche

Mapuche significa “gente da terra”. Eram realmente gente da terra, até terem seu território expropriado pela colonização espanhola e serem relegados ao nível mais baixo da escala social. Hoje eles escondem suas origens, alguns trocam de sobrenome para serem aceitos na “sociedade civilizada” e conseguirem um emprego qualquer. É o fenômeno da padronização cultural, apesar da liberdade que se atribui ao sistema.

Existe a lei do indígena no Chile, mas simplesmente não é respeitada. As políticas governamentais, além de serem as comuns “tapa-buracos”, não levam em conta as reais necessidades e os desejos dos mapuches. Um exemplo concreto: num determinado caso, derrubaram suas cabanas e construíram casas. Mas o mapuche não vive em casas, vive em cabanas. Quando foram ver, as casas construídas estavam sendo usadas como chiqueiro pelos supostos beneficiários.

O movimento mapuche acusa o governo de terrorismo de Estado por encarcerar mapuches sem evidência alguma e criminalizar o movimento social.

Pé na estrada

Após dez dias em Valparaíso, já sentíamos que era hora de partir. Queríamos chegar ao Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais na Bolívia, de 12 a 15 de outubro. É sempre bom seguir viagem, mas também é um pouco difícil – quando acabamos de nos apaixonar por um novo lugar, novas pessoas, novos costumes, já está na hora de ir.

Em nosso último fim de semana em Valparaíso, pegamos o Carnaval dos Mil Tambores. Ficamos até as cinco e meia da manhã, numa festa com muito batuque e dança. Não é só brasileiro que sabe fazer festa não.

Saída do Carnaval dos Mil Tambores. Fotos de Thiago Martins.

Tivemos um jantar de despedida na casa de Camila, irmã de Luciana. Ela, que cozinha muito bem, fez um pulmai, prato típico que leva mariscos, batata, carne de porco e frango, acompanhado de vinho branco. Mais uma vez ficamos até as cinco e meia da manhã, apesar de que nosso plano era partir no dia seguinte cedinho. Sabe-se lá quando poderíamos rever esses novos amigos, e a noite estava tão boa…

Mas partimos. Tentamos pegar carona a tarde inteira, mas não saímos do lugar. Decidimos gastar com ônibus, afinal nosso objetivo era chegar a tempo para o fórum. No guichê da rodoviária, expliquei que queríamos ir para a Bolívia e perguntei para onde deveríamos ir. Nos mandaram para San Pedro de Atacama, mas só tinha ônibus na noite seguinte. Ficamos num hotelzinho e no dia seguinte fomos rumo ao norte. Chegamos lá tarde da noite. Para nosso azar, não tinha como ir para a Bolívia por ali – demoraria muito, as estradas são muito ruins. (Nem sempre acredite nos atendedores de guichê de rodoviária.). Era melhor irmos para Calama, pertinho dali, onde deveríamos pegar um ônibus para Arica e daí então entrar na Bolívia. Porém ônibus para Calama, só na manhã seguinte. Nesta nossa romaria para deixar o Chile, dormimos num albergue em San Pedro, cidade que vive do turismo, situada em pleno deserto do Atacama. Nunca vi tantas agências de viagem num lugarzinho tão pequeno. A região tem fama de ser mágica e singular, mas só tivemos tempo de dar uma voltinha.

Chegamos ao meio-dia em Calama. Comprei nossas passagens para Arica, mas teríamos que esperar até às onze da noite. Estávamos fazendo hora na rodoviária; num determinado momento, fui ao banheiro, enquanto Thiago estava lendo. Nesse instante de distração, roubaram minha mochilinha, não a grande com as roupas, mas a que levava minhas duas câmeras fotográficas (uma digital fuleira e minha Nikon FM2, adquirida especialmente para a viagem), meu cartão de crédito, os colares que estávamos vendendo, um disco do Victor Jara, definido como o “Chico Buarque chileno”, que um amigo de Valparaíso me deu, y otras cositas más. Passei o dia inteiro fazendo boletim de ocorrência, tentando entrar em contato com minha mãe para que cancelasse meu cartão, andando na rua olhando neuroticamente todas as pessoas, para ver se encontrava o desgraçado com minha mochila. Susto, raiva, impotência, desânimo – esses sentimentos que costumam aparecer nesses momentos vieram à tona, e o clima da delegacia só contribuiu para aumentá-los. O que eu não sabia é que esse incidente seria a peça inicial que, num efeito dominó, desecadearia toda uma mudança na nossa forma de viajar.

Chegamos em Arica na manhã seguinte e de lá pegamos um ônibus para a Bolívia. Um lugar completamente diferente de tudo o que já vivi. Mas essa já é outra história…

 

Esse texto faz parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.

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