Apresentação no 66 Billares, Buenos Aires, setembro de 2006.
Essas imagens fazem parte do livro Viajeros, que foi publicado em posts nesse blog.
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No momento em que estávamos chegando em Córdoba, comentei com o Thiago: “essa cidade tem um ar de Curitiba”. Mas a primeira impressão nem sempre fica. Córdoba é Córdoba.
Uma noite Thiago estava fazendo uma de suas performances nos semáforos quando foi chamado para ir trabalhar numa festa com seus malabares por cerca de duas horas – em troca, ganharia 40 pesos. Ele topou, e eu fui junto. Foi bem engraçado – era uma festa para menores de idade, em uma boate. Uma piazada de 15/16 anos se esforçando para aparentar 20. As meninas superproduzidas, com micro-saias e tops, os meninos de calça larga, boné e cigarro na mão. Músicas horríveis a noite inteira, mas como ainda não nos alimentamos de luz, e nem sempre conseguimos carona, a grana é necessária. Ossos do ofício.
Ficamos num hostel cujo dono vivia lá mesmo. Ele dormia nos quartos para seis pessoas, em um beliche, junto com os hóspedes. Trabalhou em outros hostels que, segundo ele, eram muito “estilo empresa”. Ele não, ele quer receber os mochileiros na sua casa, em um ambiente informal e aconchegante. A ideia é legal, mas o problema é que alguns hóspedes ficavam o dia inteiro dentro do hostel – que, portanto, estava sempre cheio. Havia um computador com internet disponível, mas eu dificilmente conseguia usar, sempre tinha alguém.
Depois de uns dias queríamos encontrar outro lugar para ficar, onde pagássemos menos e tivéssemos mais espaço para ficar tranqüilos. Um dia eu e Thiago nos desencontramos e caminhamos separados pela cidade. Ele viu um cara tocando flauta, tirou uma foto, perguntou quanto custavam as flautas que ele produzia e assim foram conversando. Seu nome era Kike e fazia uns cinco anos que estava viajando; já pensava em voltar para o Equador, sua terra natal.
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Kike. Foto de Thiago Martins.
Ele conseguiu que nós ficássemos na casa que ele alugava. Teríamos que pagar dez pesos diários por pessoa, mais barato que o albergue. Era um moquifo, não tinha uma panela limpa, mas para ficar só dois dias dava pro gasto. Na verdade, queríamos ter deixado Córdoba na sexta-feira, mas descobrimos que o trem para Buenos Aires só sairia no domingo. Nesses dias não planejados a mais, ficamos na casa de Kike.
Aliás, a viagem de trem foi uma decepção. Pensávamos que iríamos ver lindas paisagens pela janela, como nos filmes. Até poderia ter sido, se a viagem não fosse praticamente toda à noite. Saímos às 16h30 de Córdoba e chegamos a Buenos Aires às 07h30 da manhã. Mesmo assim foi interessante – além de muito barato. Na saída de Córdoba pudemos ver as villas, equivalente às favelas brasileiras. Chegou um dado momento em que tínhamos que fechar as janelas e persianas do trem, porque as pessoas jogam pedras. Ficou claro que a Argentina sofre dos mesmos problemas que o Brasil, mesmo que em diferentes proporções – concentração da população nas áreas urbanas industriais e a consequente marginalização da mão-de-obra excedente não qualificada que, como cães de rua, vive dos restos.
Thiago estava louco para fumar, afinal a viagem foi longa. Na fila do banheiro, encontrou um senhor que discutia em vão com o guarda para que pudesse fumar. Thiago entrou na conversa e, com a saída do guarda, acabaram os dois fumando juntos escondidos no banheiro. Que cena. O senhor veio sentar com a gente. Era sociólogo, militante da Teologia da Libertação – ala socialista da igreja católica. Conversamos por muitas horas sobre sociedade, cultura e América Latina, até que o sono nos pegou. Acordamos em Buenos Aires.
Um país em declínio
Conversando com as pessoas, pude concluir que a Argentina, que por um longo período da história criou uma imagem de distanciamento da miserável situação latino-americana, está em crise. O ódio que sentem por Menem, o ex-presidente corrupto que fez o trabalho que Collor e FHC fizeram no Brasil, pode ser ouvido nas conversas e nas músicas. O histórico investimento em educação, tão característico do desenvolvimento argentino, vem sendo abandonado. As instituições de ensino mantidas pelo governo enfrentam as mesmas situações enfrentadas no Brasil: falta de verba, de professores e problemas de infraestrutura; o tal do sucateamento das escolas públicas. O desemprego assola a população. A marginalidade e o trabalho informal surgem da necessidade como soluções imediatas à crise.
Em Buenos Aires estava lendo As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. É triste perceber que os problemas são essencialmente os mesmos em nosso continente, independentemente do período histórico ou do país. Às vezes o poder se transfere de mãos, os produtos de exploração se alternam em ciclos, os regimes políticos são derrotados e substituídos, mas a estrutura de exploração é a mesma: expropriação das riquezas naturais e humanas, exportação da maioria do capital e concentração do pouco que fica na nação em mãos de uma elite intermediária. Como o grosso do capital vai para o exterior, o Estado fica sem verbas para os investimentos básicos, e vai pedir ajuda justamente para aqueles que lucram em seu território. O empréstimo vem, mas junto com várias “recomendações” de como investi-lo, mantendo esse sistema de exploração.
José Carlos Mariátegui fez um diagnóstico do Peru no ano de 1928, em Sete Ensaios da Realidade Peruana, porém sua validade se estende para a América Latina e, infelizmente, continua atual.
O obstáculo, a resistência a uma solução, encontram-se na própria estrutura da economia peruana. A economia do Peru é uma economia colonial. Sua movimentação, seu desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados de Londres e de Nova Iorque. Estes mercados enxergam o Peru como um depósito de matérias primas e uma praça para suas manufaturas. A agricultura peruana obtém por isto, créditos e transporte apenas para os produtos que pode oferecer com vantagem nos grandes mercados. As finanças estrangeiras interessam-se um dia pela borracha, outro pelo algodão, outro pelo açúcar. O dia em que Londres possa receber um produto a melhor preço e em quantidade suficiente da Índia ou do Egito, abandonará imediatamente à sua própria sorte seus fornecedores do Peru. Nossos latifundiários, quaisquer que sejam suas ilusões que tenham acerca de sua independência, não deixam de agir, na realidade, apenas como intermediários ou agentes do capitalismo estrangeiro.
Mas a Argentina ainda tem uma vantagem, uma carta na manga: a consciência política. As manifestações artísticas argentinas frequentemente têm conteúdo crítico. A população em geral fala de política, reflete sobre a situação de seu país, desde os mais velhos até os mais jovens. Caminhoneiros me contaram das injustiças sociais, os músicos falam da desigualdade em seus discos. Nos dias em que passei em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, sempre havia manifestações populares. Há um movimento fundado pelas mães de perseguidos políticos, as Madres de Plaza de Mayo, que surgiu como protesto aos horrores da ditadura e exigia a volta com vida dos jovens desaparecidos. Esse movimento cresceu tanto que hoje possui um jornal, uma rádio, uma biblioteca e até uma universidade. Estive na biblioteca, que possui um acervo riquíssimo de obras sobre América Latina, povos autóctones, movimentos sociais etc.
Parece existir na Argentina uma consciência de que as coisas estão erradas, historicamente, e que não precisam ser assim. O próximo passo seria elaborar uma alternativa coletivamente e depois, o mais difícil, implantá-la – trabalho que os movimentos sociais vêm tentando desenvolver. Evoluir da consciência crítica para a construtiva.
Última parada
De Córdoba fomos para Buenos Aires e depois seguimos pedindo carona em direção ao Chile, com a intenção de parar na parte argentina da Cordilheira dos Andes e conhecer neve – o sonho de todo brasileiro. Fomos parar em Puente del Inca, uma cidadezinha povoada por uma base do exército e comerciantes que recebem diariamente as várias excursões de turismo que passam pela cidade. Todo esse clima turístico, incluindo os preços altos, não puderam abalar a nossa alegria. Voltamos a ser crianças. Ficamos só dois dias, cercados de lindas paisagens – uma curiosa e singular mistura de vegetação semi-desértica dos Andes e neve -, e seguimos rumo a Valparaíso, no Chile.
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Puente del Inca.
Ao fim de nossa passagem pela Argentina, apesar de ser difícil colocar toda uma nação num mesmo saco, poderia definir os argentinos com duas palavras: loucos e apaixonados. Acho que essa rivalidade com os argentinos é porque eles têm uma personalidade muito forte, “personalidade demais”, para alguns. “É que o argentino tem muito amor próprio”, me disse Beto, o senhor de Junin. Pode ser. Mas pensando bem, encontrei uma terceira característica para os argentinos: loucos, apaixonados e apaixonantes.
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Primeira vista da Cordilheira dos Andes.
Hoje, pela primeira vez, vimos montanhas na Argentina. E não se tratam de simples montanhas: tivemos o prazer de vislumbrar a Cordilheira dos Andes delineada pelo por do sol. Em dois dias de estrada praticamente cruzamos o país horizontalmente. Faltam menos de 300 km para chegarmos ao nosso destino, uma cidadezinha andina rodeada por neve, quase no Chile.
Acordamos em Buenos Aires às quatro horas da manhã. Pegamos três ônibus urbanos até alcançarmos o ponto da estrada indicado para pedir carona. Depois de algumas caronas curtas, chegamos à cidade de Cochabuco. Mais um fim de tarde, mais uma expectativa de dormir na estrada. Estávamos decidindo onde nos abrigar quando um carro com dois senhores de uns 50 anos parou. Iriam a Junin, a uns 50 km dali. Aceitamos a carona – ao menos avançaríamos um pouco mais.
Eles faziam o tipo de quem nunca se espera uma carona – meia idade, um bom carro e roupa social. Mas os dois pareciam ser boa gente. Beto, que estava no volante, combinava um churrasco com seus amigos através do celular. Conversa vai, conversa vem, ele nos convidou para o churrasco. É claro que aceitamos de imediato, apesar de sermos vegetarianos. Abrem-se exceções. Beto ficou espantado com a rapidez com que eu aceitei, sem nem pensar muito. “É que eu gosto muito quando as coisas acontecem por si só, sem planejamento”, eu disse. “Você deve gostar muito de churrasco, isso sim”, gracejou Beto.
O fato é que, com churrasco ou sem churrasco, não conseguiríamos mais caronas – a noite já vinha chegando. Teríamos que pernoitar em Junin. “Onde vocês pensam em dormir?”, perguntou Beto. “Não sei, se tiver um albergue, um hotelzinho barato, um camping, não sei”, meio que perguntei, meio que respondi. No fim das contas, ele ligou para seu irmão, dono de um hotel que funciona na antiga casa da família de Beto, onde ele passou sua infância. “Pronto, consegui um lugar para vocês essa noite, e sem pagar nada”.
Não podíamos acreditar. Iríamos a um churrasco – asado, como dizem por aqui -, a mais típica comida argentina, dormíriamos num hotel, tudo assim, de repente, do nada. Mas o mais tocante foi a atenção que recebemos. Beto nos mostrou a cidade, nos levava e buscava do hotel e, por sua insistência, acabamos ficando mais uma noite. Conhecemos sua família, seus amigos, até fui ao mercado com ele e sua filha. Pegaram dois carrinhos: enquanto ela fazia compras para casa, ele comprava comida para uma senhora a quem ajuda. Abandonada pelo marido, desempregada e com cinco filhos pequenos para criar, ela se mantém às custas de caridade. O carrinho dele estava cheio de carne, leite, queijo, frutas e besteirinhas para as crianças. “Pai, você vai gastar demais”, advertiu a filha. “Quando a gente morre não leva nada junto, nem o dinheiro, não é verdade?”, disse Beto, com seu jeito bonachão.
No incidente “feira de artesanato na Plaza de Francia” fiquei muito decepcionada com o ser humano. Em momentos como aquele me pergunto se vale a pena tentar construir uma sociedade melhor, dedicar a vida a isso. Às vezes parece que o ser humano é um animal escroto por essência, que é essa a condição humana. Mas quando encontro pessoas como Beto, sua família e seus amigos, me encho de esperança, passo a acreditar que só precisamos de uma forcinha, que a bomba está prestes a explodir (se é que já não explodiu), que encontramos a escada, é só começar a subir. Brilha uma estrela no céu nublado.
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Eles partiram na noite do dia 15, rumo à Bienal da UNE, em Salvador, com o objetivo de chegar até Belém do Pará, para o Fórum Mundial Social. Dois ônibus lotados de estudantes da UFPR, preparados para enfrentar o chá de cadeira que for necessário para ir. Voltarão outros. Esperemos a volta desses novos seres.
Entre experiências agradáveis e decepções, Buenos Aires está sendo uma loucura. Um dia, andando pelas ruas centrais, nos deparamos com um trio de rock (baixo, guitarra e bateria) alucinante. Uma grande platéia se juntou na praça, inclusive senhores de terno e gravata curtindo o som, que variava do punk até o reggae. Puro improviso.
Depois fomos parar numa casa de shows que parecia ser muito boa, com quadros inspirados no tango e velas sobre as mesas. A entrada era trinta pesos por pessoa. “Não tem desconto para estudante?”, tentei pechinchar. O funcionário acabou colocando nós dois para dentro por uma entrada. Saímos no lucro? Nada disso. Trinta pesos jogados no lixo. Uma tal de Silvina Garrés subiu ao palco e nos fez conhecer o pior da música pop romântica argentina.
O Thiago quase dormiu. Eu fiquei tentando entender o que ela falava, mas era sempre sobre alguém sem o qual ela não pode viver…
A casa em que estamos hospedados é muito legal. Pablo, um dos moradores, faz parte do Soylocoporti, organização pela integração latino-americano que tem como membros amigos nossos de Curitiba. Nesta casa moram umas seis pessoas, que vivem solidariamente e abrem espaço para a cultura.
Às segundas-feiras acontece o ensaio da banda de música andina, da qual Pablo faz parte. Domingo houve uma oficina de introdução ao calendário maia e, na sexta-feira, uma festa de comemoração da independência do Chile. Pablo e Antonio, outro morador da casa, são chilenos, e muitos amigos conterrâneos compareceram à festa no terraço. Ficamos conversando com o Reymond, que é de Mendoza, província argentina na divisa com o Chile, famosa por seus vinhos. Seu irmão está morando em Cuba, nós queremos ir para lá e assim a conversa foi fluindo. Ele nos chamou para irmos a um bar, onde tocaria com outros músicos. Já que era de graça, fomos.
No caminho descobrimos que se tratava de um bar de jazz. Reymond toca saxofone e junto com ele estavam o também saxofonista Johnny, um baixista e um baterista. Foi fantástico. Johnny parecia que tinha música nas veias, além de ser um palhaço. A plateia também dava espetáculo. Os amigos dos músicos eram… como posso dizer… insanos.
Depois da apresentação, uma mulher na mesa ao lado estava contando a história da Geni, personagem da música da Ópera do Malandro, de Chico Buarque. Me meti no meio da conversa: “oi, tudo bem, eu sou do Brasil, estava ouvindo a conversa e só queria dizer que, na verdade, Geni é um travesti”. Assim começou o papo. Ela apoia o MST e o PSOL, queria saber em quem eu vou votar, como está o processo eleitoral no Brasil, essas coisas. Engraçado, ela sabia mais da conjuntura política do Brasil que muitos brasileiros. Saímos do bar e voltamos para a festa. Quer dizer, eu fui direto para a cama.
Outra coisa interessante é que nas praças e parques sempre há pessoas deitadas na grama, lendo, brincando ou simplesmente tomando sol. E quando digo pessoas incluio crianças, velhinhos, jovens, casais de meia idade e também moradores de rua. Isso me surpreeendeu. Aqui não é como em Curitiba – riquinhos no Barigüi, mendigos na Tiradentes. As pessoas se misturam um pouco mais e parece que não se tem tanto medo das pessoas que vivem nas ruas.
Ah, mas como costuma ser em todos os lugares, existem várias Buenos Aires. A Buenos Aires dos cafés caros do centro, com pessoas sérias, bem vestidas, com jeito de esnobes. A Buenos Aires da periferia, repleta de bolivianos, favelas (ou villas, como chamam os argentinos) e condomínios feios. A Buenos Aires de San Telmo, o tradicional bairro com suas lojas de antiguidades, no qual a cerveja custa em média oito pesos, enquanto nos lugares mais baratos se paga três pesos e cinqüenta centavos. Tem a Buenos Aires da Recoleta, onde se localiza a Plaza de Francia, que me pareceu o lugar mais nobre da cidade.
É incrível a tenaz linha que separa a nobreza dos plebeus. Estávamos na Recoleta, saindo da feira de artesananto, com fome e procurando um lugar para almoçar. Tudo caro, obviamente. “Vamos até o centro”, pensamos, “lá vai ser mais barato”. E, depois de caminhar um pouco, de repente, de uma quadra para outra, saímos do reduto de luxo, onde as ruas são mais limpas e arborizadas, as lojas mais finas, os prédios mais elegantes, e entramos no centro. Três e cinqüenta um sanduichão. Viva as lanchonetes de banheiro sujo e comida barata.
Aliás, essa é uma característica argentina que não me agrada: comida barata, só besteirada. Não aguentamos mais comer pizza de mussarela. As massas também não saem muito caro e são bem mais atrativas, mas para quem precisa economizar, é um luxo que só se permite de vez em quando. Bom mesmo é quando podemos cozinhar. Comida boa, saudável e barata.
É, Buenos Aires surpreende, em todos os sentidos. Europa sul-americana, nem tanto. Mas que é uma loucura latino-americana, ah, isso é.
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Nas situações mais corriqueiras me deparo com a necessidade urgente de uma grande mudança que parta da humanidade. É uma questão de mentalidade, dos valores básicos que regem nosso cotidiano, nossos relacionamentos, nossa visão de mundo, do outro e de nós mesmos.
Há pouco mais de um ano estive como turista em Buenos Aires. Naquela ocasião conheci a Plaza de Francia, que todo fim de semana é ocupada por uma feira de artesanato. Fiquei encantada com tantas coisas lindas, por sua originalidade e engenhosidade. Hoje voltei à mesma praça, agora como artesã, e infelizmente o encanto se desfez.
Chegamos à praça e fomos fazer o “reconhecimento do local”. Percebemos que não havia artesãos estendendo panos no chão. Conversei com um vendedor e ele me confirmou que realmente a polícia não permite a venda informal. Amarrei nossos swings de fitas no pescoço e comecei a brincar com um par deles, mostrando como se faz. Se alguém parasse para olhar, daí sim diria que estavam à venda. Um jeitinho de driblar a fiscalização.
Ao meu lado, a uns seis metros, um senhor tocava seu violão, com o chapéu no chão. Ele pareceu fazer um gesto para mim. “Será que ele quer que eu saia?”, pensei. “Não, não deve ser isso”. Mas era. Ele se levantou e veio em minha direção. Disse que eu tinha parado muito perto dele, que era para eu sair dali. Argumentei que não estava pedindo dinheiro pelo “espetáculo” (eu estava treinando, minha habilidade com os malabares é pífia). Mas ele firmemente, ou rudemente, falou que eu desviaria a atenção das pessoas. “Há outros lugares por aí, aqui já tem gente suficiente”, concluiu. Virou as costas e voltou à sua posição. Eu, muito chateada, cedi. Afinal, se o trabalho de um artesão atrapalhasse o do outro, por que todos se juntariam em uma praça? Não é justamente a diversidade o atrativo das feiras?
Saí para dar uma volta, tirar fotos, espairar. Encontrei um outro senhor tocando violão e cantando. Apontei minha objetiva, estava ajustando o foco quando o vi fazer um gesto – dessa vez eu entendi, ele queria que eu colocasse uma moeda, justo eu, andarilha aspirante a artesã frustrada. “Sem dinheiro, sem foto”, disse ele. Parou a música só para me impedir de tirar uma foto. Fiquei tão chocada que não consegui argumentar. Nocaute. Justamente dois senhores, de quem se espera sabedoria, ou ao menos maturidade. No mínimo educação. Mas a pobreza de espírito não tem idade, sexo nem raça.
Lembrei dos artesãos de Isla de Cerrito. Sentiam imenso prazer em dividir seu espaço, sua comida, seu conhecimento com quem quer que fosse, inclusive dois brasileiros que haviam conhecido dois dias antes.
Sim, é uma questão de mentalidade, de valores. De pôr em prática a fraternidade e superar o egoísmo e o materialismo. Uma questão de se permitir evoluir, de plenamente ser humano.
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Em plena região central da capital paulista, redutos verdes surpreendem os que encaram São Paulo como uma monótona selva de pedra. Caminhando pela cidade encontrei verdadeiros bosques em meio ao cimento, surpreendendo com seu frescor e cheiro de mata. Esse é o parque Água Branca, no bairro Perdizes.
Aproveitando a passagem pela província de Córdoba, fomos à casa onde Che Guevara passou sua infância, transformada em museu. A casa se localiza em Alta Gracia, a cinquenta minutos de ônibus da capital da província.
Pudemos conhecer a história do menino e adolescente que viria a tornar-se o homem-mito, símbolo da luta por justiça e igualdade, e sua posterior trajetória como guerrilheiro e líder político. Sua dedicação aos seus ideais é memóravel. Um homem que na conduta privada e social seguia seus princípios, que dedicou a vida à construção de uma sociedade que não diferencia pobres e ricos, brancos e negros, homens e mulheres, e que acreditava que a luta armada era a única maneira de mudar o sistema opressor. Abdicou dos prazeres que sua condição social oferecia, da convivência com sua família, tudo na tentativa de concretizar o que achava ser o melhor para a humanidade.
“Sejam capazes de se indignar cada vez que virem uma injustiça”, escreveu Che Guevara aos seus filhos. Mas não queremos ver. Convivemos com crianças revirando lixo em busca de comida e desviamos o olhar. Selecionamos o que convém à estabilidade de nossos mundinhos de ilusão e consumo. Nos empilheiramos em grandes centros, cedemos à massificação, à desumanização e ao tratamento impessoal da civilização moderna. Fazemos dos meios os fins. O dinheiro deixa de ser uma ferramenta, passa a ser um objetivo em si mesmo, o maior e incontestável valor humano. Somos incapazes de conversar com os moradores de rua, de oferecer-lhes um pedaço de pão. Transformamos solidariedade e amor ao próximo em palavras vagas, esvaziadas de seu verdadeiro significado.
Somos egoístas. Competitivos. Capitalistas. “Que vença o melhor”, esse é o lema de nossa sociedade. Mas a maioria nem tem a oportunidade de desenvolver seu melhor, é explorada em subempregos, desempregada, sobrevive nas condições mais precárias de vida, excluída de infraestrutura e tecnologia.
Tenho vergonha do que a humanidade se tornou. Bando de selvagens egoístas, isso que somos. Temos medo. Queremos poder, conforto e prazer. Não dialogamos, trocamos frases mecânicas que não dizem nada. Conveniência social, bons modos. Desumanização. Escondemos o que temos de mais rico, de mais espontâneo e único atrás de frases feitas. Nossos olhos estão presos aos nossos umbigos. E assim, insistentemente, seguimos.
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